Autor: Luis Fernando Moura

Berlinale 70: uma edição corajosa em meio a intempéries

Days (Tsai Ming-Liang, 2020)

A 70ª Berlinale iniciou em meio a intempéries de vários níveis, do temor sobre o coronavírus (o júri do prêmio Teddy, por exemplo, teve ausente um de seus jurados, chinês, ficando desfalcado) a mudanças de infraestrutura causadas por revisões orçamentárias e reformas na região da Potsdamer Platz, base do festival. Na quarta antes da abertura, um atentado da extrema direita em Hanau, próxima a Frankfurt, retomou fantasmas. Semanas antes, a revelação de que Alfred Bauer, importante ex-diretor já falecido do festival, fora ligado ao nazismo, pôs o festival em controverso retrospecto. O prêmio que há 33 anos levava seu nome foi cancelado pelos novos diretores, Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian.

Em conversa com críticos alemães, para mim ficou nítida certa desconfiança, por parte da imprensa local, diante dos rumos que os novos diretores viriam dar ao festival. Rissenbeek, holandesa, vinha há alguns anos à frente da agência alemã German Films, assumindo a direção executiva da Berlinale. Chatrian, italiano, há seis dirigia o Festival de Locarno, convidado para a direção artística em Berlim. A lista de programação divulgada já deixava claro que certo capital simbólico de mercado por aqui, neste festival de maior magnitude que o suíço, somava-se a certo prestígio cultivado por Chatrian junto a alguns setores artísticos. Após os dez dias de Berlinale, ficou evidente que o perfil de Locarno, que vinha se firmando como festival atento, arriscado e arrojado em termos curatoriais, ganhou readequação na infraestrutura maior de Berlim – ainda que esta mesma tenha sido reduzida, de cerca de 400 para 350 filmes. Considerada por alguns uma Berlinale em tom menor, em geral o festival foi aclamado pela crítica internacional por uma retomada de relevância artística, uma amostragem de personalidade curatorial e a busca por um filão próprio que seja capaz de diferenciar Berlim de outros grandes festivais, como Cannes, Sundance e Veneza.

Isto está evidente em certo balanço, na competição oficial, que fez desta edição a mais instigante desde que acompanho as listas da Berlinale: balanço entre certos grandes realizadores de propostas particularmente inventivas, limítrofes, entre cinema de mercado e cinemas pequenos (Tsai Ming-Liang, Hong Sang-soo); apostas em nomes não tão capitalizados de pesquisa própria fresca, saborosa, por vezes surpreendente (como Kelly Reichardt e a parceria entre Caetano Gotardo e Marco Dutra); e um tom político mais direto que aparece em formas mais convencionais de comentário (Gustave Kervern e Benoît Delépine ou o Urso de Ouro Mohammad Rasoulof), traço das últimas seleções que ganhou continuidade. Em linhas gerais, uma seleção de corpo, em que os piores filmes parecem compor mais um desejo de diversidade e cor do que indicam falta de fôlego. É muito saudável que os públicos possam conhecer formas tão diferentes de se fazer cinema numa única seção, que é de todo modo prestigiosa junto às multidões e atrai milhares de pessoas aos palácios do festival.

Para reiterar seu desejo por arrojo e alocar mais filmes envisionados por seu projeto de curadoria, Chatrian criou a seção Encounters, em que 15 filmes em geral um pouco mais idiossincráticos se reuniram como numa espécie de segunda competição para cinemas cujos traços artísticos são imponentes sem que deixem de investir numa experiência forte de sala de cinema. Sendo assim, a Forum, em sua 50ª edição, ficou marcada por um ar independente ainda mais arejado, sendo que ao fim de 10 dias fica claro que aqui a busca por cinemas diferentes ganha agora um tom mais distinto de liberdade, de certo descompromisso com o espetáculo das vogas. Do contrário, há uma crença de que o fazer artístico não é dirigido por laboratórios e mercados, mas por projetos de pensamento essencialmente particulares.

É uma ideia francamente afirmada com a retomada da programação da primeira Forum (cujo nome completo é Forum Internacional do Novo Cinema), em 1971, como comemoração do cinquentenário. Era uma seleção particularmente incrível, de forte inflexão política, com filmes de Chris Marker a Nagisa Oshima, de Med Hondo a Theo Angelopoulus, em contexto de Guerra Fria cujos temas e formas ressoam nas guerras ideológicas atuais, e daí sua revisão ser tão oportuna. Sob a direção também renovada de Cristina Nord, eis a Forum fazendo um grande trabalho de retomada e reafirmação de princípios, dando à Berlinale um ar de constelação. As tantas seções do festival (Panorama, Generation, Berlinale Shorts, Forum Expanded), quase todas passando por reformulações, parecem estar dirigindo a atenção a uma sensibilidade internacional progressista que se traduz não só nas bandeiras, mas também em possíveis formas para as novas batalhas históricas, num generoso retrato dos cinemas do presente. Belo festival.

‘Todos os mortos’: certos movimentos no cinema brasileiro

Exibido na competição oficial, Todos os mortos de Caetano Gotardo e Marco Dutra foi uma seleção dissonante numa bela competição oficial, muito mais instigante que nos anos anteriores, cheia de filmes igualmente idiossincráticos, universos fascinantes e distintos de cinema (pensar, por exemplo, em Days, de Tsai Ming-Liang, Siberia, de Abel Ferrara ou First Cow, de Kelly Reichardt). Em particular, o brasileiro (com co-produção francesa) me parece indicar, com frescor, certos horizontes para o estado da discussão (inclusive formal) em torno da anti-colonialidade nos debates locais.

Se se reivindica um movimento que deixa de ser meramente futurista, como na voga recente, e que ultrapassa o presenteísmo que veio marcando tanto o retrato geral dos nossos filmes em anos anteriores, para então escavar memórias coletivas (note-se a lida com as diásporas africanas ou as vozes queer ou indígenas), Todos os mortos se soma a filmes recentes como Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, ou O nó do diabo (2017), de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Gabriel Martins, Ian Abé, com que se enfrenta a imaginação de época da história geral básica brasileira. Aqui, temos um filme que em particular acessa dados da história oficial, sem que busque neles o mero documento, mas material para reconfiguração artística dos próprios dados: quer dizer, nossas datas históricas são não só o palco para dramaturgias novas como põem em novo diagrama relações simbólicas de classe, raça e gênero a partir de certos interesses propriamente dramáticos e estilísticos, e que têm feito dos cinemas de Caetano Gotardo e de Marco Dutra tão frequentemente instigantes.

A recepção mista em Berlim me parece dever em parte à não familiaridade do olhar estrangeiro com certas intuições que movimentam o filme a partir da domesticidade de costumes e valores. É, assim, muito lindo ter visto esse filme ser exibido num palácio e a multidão de espectadores a ter que se explicar para ele (não é isso o que fazemos diante de um filme?). A ver suas reverberações quando chegar ao Brasil.

Filmar dissidências: entre vida e filme

Las mil y una (Clarisa Navas, 2020)

Na abertura da Panorama, Michael Stütz, novo diretor da seção, reclama pela rebelião. A Panorama é a do discurso direto, a que mais acredita na representação, e na representatividade, na chave da comunicação ampla como maior vocação do cinema. Há uma lista de problemas a ser tocada e de alguma maneira reparada pela imaginação do cinema (isso parece ser uma crença). Em especial, lutas geopolíticas e micropolíticas: trata-se, em geral, da união de bichas e bruxas (ou seja, todas as vidas que escapam ao status quo), em histórias de desobediência contadas com a transparência da tradição clássica em suas versões contemporâneas.

O filme da abertura, Las mil y una, assim se anunciou: filme de diretora argentina – Clarisa Navas – balanceando a hegemonia G na indústria da cultura LGBT, bem como indicando o projeto deste festival em destacar outro ponto de vista que não o do hemisfério norte. Se há algo de maior interesse no filme de Clarisa – e no que significa a escolha deste filme para abrir a mostra – é certa reconexão temporal entre lacração e realismo, digo: se nos últimos tempos vimos muitos cinemas dissidentes apostando no artifício, no bafo, no extemporâneo da performance como alternativa de vida (ou de morte de um mundo para surgimento de outro, como se tem dito no lugar comum das nossas melhores esquerdas), aqui há uma espécie de retorno ao pacto naturalista. Com isso, não significa que se tenha abandonado a reivindicação pelo queer como alternativa à política LGBT (que teria mais a ver com acesso a instituições que com a performatividade de visões outras). Nem que, neste sentido, deixamos a fantasia criadora do palco para retornar à melancolia mitigadora do quarto. Me parece é que talvez a invenção do corpo queer contemporâneo demonstra assimilação pelo olhar comum, já podendo ter educado os corpos do presente como o entendemos, e assim retornar à superfície onde se dá a tessitura do tempo cotidiano.

Do encontro entre fetiche do plano-sequência, retrato das vidas e busca por corpos extraordinários, talvez a assunção de que a educação queer despeja o artifício na sabedoria do tempo; e a dissidência, motor deleuziano, é reconfigurada em código baziniano. Erika Lust encontrou Lucrecia Martel. Observe com calma e verás cada detalhe dos gestos os quais nosso olhar, tendo olhado o bastante, já pôde assimilar, analisar, reexibir para um filme. Não estou falando simplesmente de filmar o cotidiano, mas talvez o contrário, um projeto de cotidianizar o filme: há uma difícil busca racional pelo propriamente pulsional no modo como o filme de Clarisa entende ser capaz de sequestrar gestos de pessoas (no que será um filme portanto em muito coreográfico). Las mil y una termina por localizar e indicar uma disputa que parece central à Panorama e à Berlinale: entre aquilo que preserva o rasgo das liberdades e aquilo que representa, e portanto domestica, vidas dissidentes (para fazer filme).

O sol queima sobre nós: parte do problema


Memory Also Die (Didi Cheeka, 2020)

Um grande sol queimando em looping está projetado no alto, sobre a entrada da área de exposição do Silent Green Kulturquartier, um antigo crematório ao lado de um cemitério no bairro de Wedding, hoje um centro cultural ocupado anualmente pela Berlinale. O filme é The sun, de Kika Thorne (2020), parte da exposição Part of the Problem (ou Parte do Problema), da Forum Expanded, seção do festival que situa o cinema na fronteira com as artes visuais. A sensação de um grande problema geral em curso, queimando sobre as cabeças e que a todos diria respeito, veio dando tom à programação e aos discursos nesta 70ª Berlinale, que busca renovação com a mudança de chefia na maior parte das seções, o que tem sido reiterado artística e diplomaticamente.

Abertura da exposição, quarta-feira 20, um dia antes da sessão de abertura: Marriete Rissenbeek e Carlo Chatrian, novos diretores do festival, incorporam à sua fala o desagravo ao ponto de vista europeu; notam, seria preciso reconhecer as diferenças, as reformas identitárias, os processos coloniais. Uma das coisas mais bonitas nessa lista de obras, que valoriza das inclinações políticas da performance contemporânea às do cinema-ensaio, em longos corredores onde um dia eram depositadas urnas com corpos cremados, é o filme Memory Also Die (ou “A memória também morre”, 2020) de Didi Cheeka, uma breve visita a arquivos que traçam a produção colonial de esquecimento na Nigéria. “Infelizmente, ainda temos mais França que Nigéria aqui, mas um dia isso vai mudar”, diz o diretor do festival.

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