Exibido na competição oficial, Todos os mortos de Caetano Gotardo e Marco Dutra foi uma seleção dissonante numa bela competição oficial, muito mais instigante que nos anos anteriores, cheia de filmes igualmente idiossincráticos, universos fascinantes e distintos de cinema (pensar, por exemplo, em Days, de Tsai Ming-Liang, Siberia, de Abel Ferrara ou First Cow, de Kelly Reichardt). Em particular, o brasileiro (com co-produção francesa) me parece indicar, com frescor, certos horizontes para o estado da discussão (inclusive formal) em torno da anti-colonialidade nos debates locais.

Se se reivindica um movimento que deixa de ser meramente futurista, como na voga recente, e que ultrapassa o presenteísmo que veio marcando tanto o retrato geral dos nossos filmes em anos anteriores, para então escavar memórias coletivas (note-se a lida com as diásporas africanas ou as vozes queer ou indígenas), Todos os mortos se soma a filmes recentes como Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, ou O nó do diabo (2017), de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Gabriel Martins, Ian Abé, com que se enfrenta a imaginação de época da história geral básica brasileira. Aqui, temos um filme que em particular acessa dados da história oficial, sem que busque neles o mero documento, mas material para reconfiguração artística dos próprios dados: quer dizer, nossas datas históricas são não só o palco para dramaturgias novas como põem em novo diagrama relações simbólicas de classe, raça e gênero a partir de certos interesses propriamente dramáticos e estilísticos, e que têm feito dos cinemas de Caetano Gotardo e de Marco Dutra tão frequentemente instigantes.

A recepção mista em Berlim me parece dever em parte à não familiaridade do olhar estrangeiro com certas intuições que movimentam o filme a partir da domesticidade de costumes e valores. É, assim, muito lindo ter visto esse filme ser exibido num palácio e a multidão de espectadores a ter que se explicar para ele (não é isso o que fazemos diante de um filme?). A ver suas reverberações quando chegar ao Brasil.