73ª Berlinale: um balanço pessoal dos dias passados por lá

Por Thaís Vidal

A Berlinale é historicamente um festival bastante político e os filmes exibidos apresentam, se não posicionamentos diretos, reflexões políticas importantes. Um aspecto bastante destacado nessa edição foi a posição contrária à guerra na Ucrânia.  Além de todos os profissionais de produção usarem um bótom com o urso de outro, símbolo maior do Festival e da cidade de Berlim, com as cores amarela azul, houve falas e pronunciamentos em oposição à situação em algumas sessões do Festival.

Entre os dias 16 e 26 de fevereiro, centenas de sessões em cinemas espalhados por toda a cidade e maravilhosamente ocupadas por cidadãos berlinenses, além dos diversos profissionais que lotam a cidade no período do Festival. Ao público alemão, me parece, interessa-lhes fortemente o que outros países, dos mais diversos, estão produzindo no cinema e isso é fascinante.

Muitos dos filmes exibidos, sobretudo nas sessões de Curtas, Fórum e Panorama,  trouxeram mulheres diretoras, o que nos destaca uma força de transformação no cenário internacional. Dos filmes brasileiros, metade foram dirigidos ou co-dirigidos por mulheres, destacando Infantaria, curta premiado pela Mostra Generation, dirigido pela alagoana Laís Santos Araújo.

Destaco também, dentro da programação, um ponto de congruência que observei na produção: filmes voltados à construção de protagonistas femininas consistentes e seus conflitos. São histórias diversas mas que refletem sentimentos, angústias, vidas e problemas do universo das mulheres, meninas em suas diversas gerações e identidades em formação. Alguns deles foram o português Cidade Habat, de Susana Nobre, o espanhol Mátria, de Álvaro Gago. O longa português Mal Viver, de João Canijo. Os curtas brasileiros Miçangas e Infantaria.

Ainda nesse universo feminista, destaco, trazendo outros pontos relevantes, os filmes 20.000 espécies de abelhas, espanhol, de Estibaliz Urresola Solaguren, que acabou por garantir a Sofía Otero o prêmio de melhor atriz trazendo uma espécie de coming of age de une menine transgênero no recorte de sua infância. E o filme And me, I’m dancing too, do iraniano Mohammad Valizadegan, que traz uma protagonista com o único desejo de poder dançar em um país onde as mulheres são impedidas de fazê-lo.

Ainda observando filmes como atos políticos posicionados, como o citado curta iraniano, no qual, ao colocar a própria atriz dançando na rua, os realizadores demarcam uma denúncia concreta e bastante arriscada contra seu estado, cito o documentário Llamadas desde Moscú, do cubano Luís Alejandro Yero, que apresenta imigrantes cubanos gays vivendo na Rússia aos primeiros sinais da guerra contra a Ucrânia e a relação opressora do espaço e da falta de identidade que enfrentam por terem saído de Cuba, pelas necessidades de fugir de seu país, em crise.

Por fim, um outro documentário que conecta a força de uma personagem feminina dentro de um contexto passível de questões quanto à figura da mulher como cuidadora, o documentário La memoria eterna, de Maite Alberdi, documentário chileno emocionante que acompanha a importante atriz chilena Paulina Urrutia e seu marido o jornalista Augusto Góngora, a quem ela cuida já idoso e com Alzheimer.

O filme constrói a partir da ausência de memória dele, a própria memória do homem que ele foi, um jornalista que serviu a seu país como comunicador e crítico à ditadura de Pinochet e que escreveu e refletiu sobre memória, conflitos e justiça. Apesar de acompanharmos a memória dele ser construída através dela num ato de completo amor e cuidado, é inegável a força da personagem da vida real que decide cuidar.

Esses são alguns destaques a partir de um pequeno recorte da programação mas que me possibilitaram inferir sobre um certo olhar, um panorama das sessões e seus aspectos.

A Berlinale é um grande festival e espero em breve voltar pra lá!

Diaba, uma aparição misteriosa

por Lorenna Rocha

Foto: José Medeiros

Exibido no ‘Forum Special’, A Rainha Diaba recebe novos olhares após ser escaneado em 4K.

“Acho que esta é a última festa que faço aqui”, diz Diaba, usando sua coroa e vários colares, com uma sombra verde que realça a tristeza em seu olhar. No entanto, o que ela não imaginava, nem provavelmente o diretor Antonio Carlos da Fontoura, é que 50 anos após seu lançamento, A Rainha Diaba (1973) estaria festejando pelo mundo, com uma nova cópia escaneada e a vitalidade típica de um filme anárquico, cativando público contemporâneo com sua estética kitsch, sua performatividade excessiva, cômica e brilhante, além de seu impressionante banho de sangue digno de uma história cheia de truques e traições.

De dentro de seu quarto, Diaba (Milton Gonçalves) dirige um negócio de tráfico de maconha na periferia do Rio de Janeiro. Sua primeira aparição é regida pelo suspense. Um grupo de homens está esperando para visitá-la até que possam entrar onde a Rainha está. A câmera atravessa o salão da casa de Diaba, onde podemos ver os rostos de todos os seus convidados, mas ainda não podemos vê-la. A expectativa deles é também a dos espectadores. Finalmente, um corpo preto aparece na tela, raspando sua perna com um canivete. É com essa primeira imagem que A Rainha Diaba constrói sua personagem principal, uma mistura entre violência, feminilidade e mistério.

Em A Rainha Diaba, há dois momentos intrigantes de coletividade, que são conduzidos por Milton Gonçalves: o primeiro, quando as ‘discípulas da Diaba’, durante a festa em que ela aparece triste, se colocam ao lado da Rainha para descobrir quem estaria “atrapalhando seu coreto”; Já a segunda é durante a cena de tortura de Isa (Odete Lara), uma personagem que é arrastada por um grupo de pessoas não-binárias e travestis para um salão de beleza e acaba traindo seu amante, Bereco (Stephan Necessian), que está mexendo na maconha da Diaba depois dela ter sido enganada por Robertinho (Edgar Rugel Aranha), um ex-sócio de confiança da Rainha, que quer tomar o lugar da Diaba no tráfico.

O corpo de Milton Gonçalves é uma presença insubmissa e inescapável, que usa a violência para romper os imaginários convencionais de criminalidade associados ao corpo negro. Além disso, a performatividade do corpo da personagem Diaba provoca, ainda, uma quebra na idéia de criminalidade exclusivamente dominada pelos homens. O corpo negro ganha ambivalência em sua dissidência de gênero, seu excesso performativo e a extensão de seu corpo, que se dá através da coletividade que envolve essa figura.

Mesmo que nem sempre seja vista por nós, objetos de cena, roupas e cores brilhantes se espalham pelo filme, fazendo de Diaba uma presença onipresente. O roxo, laranja ou vermelho dos trajes de seus parceiros de crime irradiam tanta vitalidade quanto a energia emanada pela Rainha. Todos os envolvidos nesta história a mencionam, seja por adoração ou com a intenção de ocupar seu lugar no trono. Esta figura onipresente nos convida a senti-la sem necessariamente vê-la.

Observações: este texto foi escrito e publicado em inglês, no blog Talent Press. Para conferir, clique neste link: https://www.talentpress.org/bt/talentpress/v/diaba-a-mysterious-apparition

O filme “A Rainha Diaba” está disponível para visualização na íntegra no Youtube.

European Film Market (EFM) 2023

Por Thaís Vidal

Entre os dias 16 e 22 de fevereiro, a produtora e roteirista Thaís Vidal, enviada pelo CCBA-Recife à Berlinale, participou do European Film Market (mercado cinematográfico europeu) e entendendo a importância e a necessidade de espaços como esses para impulsionar a indústria de cinema de Pernambuco, ela fez uma lista de dicas para quem tiver interesse em participar do EFM.

Os ambientes de mercado são espaços fundamentais para a internacionalização de projetos e empresas e é fundamental estar preparade para encarar os desafios dos espaços. Acreditando na importância para todes produtores de Pernambuco, aqui vão as dicas:

Primeiro de tudo, o EFM é um ambiente de negócios, onde as pessoas estão focadas em compra e venda, onde há muitas empresas, instituições e pessoas de distintos portes econômicos dentro do setor que estão interessadas em fazer negócios, portanto é preciso entender como se preparar.

Entender quem são os interlocutores, o que queremos vender ou comprar e qual é nosso patamar de execução econômica nos faz entender bem em que espaços queremos nos apresentar e logo poderemos preparar nossa agenda.

Dica principal: pesquisar o catálogo do Mercado, filmes nas sessões da Berlinale e suas produtoras e verificar se há conexões reais com os seus projetos. Depois disso, entre em contato com todas as pessoas e monte sua agenda antes de chegar em Berlim.

Atenção! Isso não significa fechar-se para coisas que podem acontecer no ambiente.  O EFM é um espaço muito grande, que reúne centenas de stands de países, produtoras, agentes de vendas e instituições em geral. Então, lá você pode encontrar novas possibilidades, mas é preciso manter o foco inicial a partir de sua pesquisa sobre pessoas com quem você vai se reunir.

Outra coisa importante é: se puder, chegue ao menos um dia antes do início das atividades, para se ambientar, entender os deslocamentos e, se possível, comprar um chip local, isso vai te facilitar nos deslocamentos e no acesso a e-mail e ao whatsapp para possíveis mudanças na agenda com seus interlocutores.

A dica final é: calma! os ambientes de mercado são enormes, mas cada reunião será um “start” e você vai começar relações que podem gerar frutos futuros para os seus projetos. Você pode sair com negócios mais encaminhados, outros completamente abertos, mas a rede de negócios é fundamental e ela vai crescendo a cada participação num ambiente como esse!

Filmes Brasileiros na 73ª Berlinale

Por Thaís Vidal

A 73ª Berlinale, que acontece na cidade de Berlim entre 16 e 26 de fevereiro de 2023, recebeu bonitos e importantes filmes brasileiros em sua programação. Apesar da grandeza dos filmes e dos esforços de seus e suas  realizadoras, realizadores, produtores, equipes e elencos, que vieram participar do festival, a discreta participação de filmes brasileiros reflete os últimos anos de destruição das políticas públicas no país e por conseguinte dos fundos para o cinema, o que desestruturou o mercado ainda mais diante da pandemia. 

A Berlinale tem um caráter bastante político e os filmes brasileiros exibidos aqui este ano acabam por refletir posicionamentos e temáticas relevantes para o cenário político nacional, a partir de formatos e perspectivas distintas, com beleza, drama, humor. 

Os filmes exibidos:

A Rainha Diaba, dirigido por Antônio Carlos da Fontoura, em 1974, cópia restaurado com apoio do Janela de Cinema, Festival do Recife, teve sua primeira exibição fora do Brasil, e Berlim.

O estranho, longa dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon, de São Paulo, em première mundial, traz os temas da ancestralidade, dos territórios.

Infantaria, curta dirigido por Laís, de Maceió, em première mundial, traz a temática da infância, do crescimento de uma menina e a relação com a menstruação, entrelaçada ao tema importantíssimo do aborto.

As Miçangas, dirigido por Emanuel Lavor e Rafaela Camelo, de Brasília, em première mundial, traz também o tema do aborto.

Ainda hoje, terá sessão do filme pernambucano Propriedade, dirigido por Daniel Bandeira.

Relato Berlinale – Talent Press

Por Lorenna Rocha

Estar numa viagem internacional pela primeira vez é um grande desafio. Cheguei na Alemanha no início da semana anterior e sinto que fui me adaptando aos poucos ao clima, à cidade, ao ritmo do festival e ao contato com diversas culturas, pessoas e situações que ainda são tão novas para mim. Ter sido selecionada no Berlinale Talents Press, uma atividade formativa em crítica cinematográfica, pode ser visto como um salto significativo na carreira. Pela primeira estou vivenciando um festival internacional desse porte e também aprendendo novas formas de trabalhar em coletivo e de construir pensamentos sobre assuntos que nem sempre estive em tanto contato, como estou tendo a oportunidade de experienciar agora.

Os encontros do Talent Press acontecem, em sua maioria, entre o HAU2 e HAU3, espaços onde as atividades da Berlinale Talents se concentram. É importante dizer que, antes de chegarmos em Berlim, nós tivemos cerca de três reuniões de preparação e também escrevemos um texto individual, sobre um dos filmes que está na programação do festival deste ano, Seven Winters in Tehran (2023), de Steffi Niederzoll. Nesses últimos dias, além de conhecer e de me aproximar dos meus colegas críticos (Teresa Vieira, Luise Morke, Jerry Chiemeke, Han Tien, Gayle Sequeira, Dora Leu e Amarsanaa Battulga), estive imersa em uma série de conversas com nossos mentores, Leonardo Goi, Pedro Butcher, Dana Linssen, Michelle Carey e Aily Nash) artistas convidados, com os assuntos dos mais diversos. Vou destacar alguns que me chamaram bastante atenção:

a) Introduction, por Leonardo Goi: Nessa atividade, pudemos nos conhecer pessoalmente pela primeira vez e comentamos os textos que foram escritos a partir do filme de Steffi Niederzoll. Foi muito legal perceber a forma de escrita de cada um dos Talents e também receber um feedback inicial de nossos mentores. Fica bem demarcado que tipo de texto crítico o programa procura, uma vez que nós escrevemos sobre o filme da programação para o blog oficial do Talent, ao mesmo tempo que somos estimulados a ter uma liberdade criativa e também trazer nossa personalidade para dentro do texto.

b) Market Studio & Talent Press – Festival and Market Inspiration: A conversa mediada por Kevin Lee foi dedicada a pensarmos nos festivais de cinema durante e após o período da pandemia da Covid-19. Quando estive no Talent Press Rio, no Festival do Rio em 2019, já havia conhecido Kevin Lee: ele nos deu uma palestra sobre vídeo-ensaio. Dessa vez, o interesse pelas mudanças e impactos produzidos pelo período de isolamento social e geográfico, além da expansão festivais de cinema no formato remoto ou híbrido, mobilizou a atividade, e Talents de outras áreas de formação (como direção, edição, design de som) puderam participar e contribuir para o debate de maneira fortuita. Esses espaços de troca também são muito importantes para conhecermos novas pessoas e acredito que esse é um dos pontos mais fortes da Berlinale Talent: incentivar a criação de conexões entre pessoas de várias áreas de conhecimento e de diferentes partes do mundo!

c)  Talent Press: Mentor’s Session II: O mentor Pedro Butcher convidou quatro artistas brasileiros(Janaína Wagner, Chica Barbosa, Lui Avalos e Pedro Harres) para conversarmos sobre VR (Realidade Virtual), cinema experimental e crítica de cinema. Esse foi um dos encontros que mais me empolguei, não apenas por estar conversando sobre cinema brasileiro, mas por ter conseguido pensar sobre VR numa perspectiva mais voltada ao circuito cinematográfico, de possíveis formas de experiência coletiva com a VR e os desafios para torná-la mais acessível e democratizar seu acesso. Além disso, a convergência entre esse tipo de trabalho e de cineastas experimentais (como Janaína Wagner e Chica Barbosa) possibilitou que nós conversássemos sobre a própria ideia de cinema, o que cabe (ou extrapola) essa linguagem e como o diálogo com outras expressões artísticas (como as artes visuais e o VR) acabam por tensionar uma ideia “convencional” de cinema.

Ainda faltam algumas atividades para fazermos! Em breve, compartilho mais notícias e impressões.

Conexão Recife – Berlinale 2023

CCBA marca presença no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale)

Por Marina Mahmood

Hoje inicia a 73º edição de um dos festivais audiovisuais mais importantes do mundo: Entre os dias 16 e 26 de fevereiro, na cidade de Berlim (Alemanha), acontece o Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale).

O festival alemão foi criado em 1978 e, desde então, ocorre anualmente no mês de fevereiro trazendo produções audiovisuais de destaque global. Os filmes exibidos durante o evento concorrem a diversos prêmios, como o Urso de Ouro (Goldener Bär) e o Urso de Prata (Silberner Bär).

A novidade este ano é que o CCBA está enviando a produtora de cinema e sua ex-aluna, Thaís Vidal, para representar o centro no festival. Em Dezembro de 2022, durante debate no Kulturforum no CCBA, Thaís levantou a importância de firmar parcerias internacionais para ampliar o mercado artístico local em Recife (PE) e no Brasil, expandindo formas de captação de recursos pela realização de cooperações e coproduções internacionais.

>> Confira a matéria sobre o Kulturforum na íntegra: http://www.ccba.org.br/kulturforum-promove-debate-sobre-cooperacao-cultural-e-politicas-publicas-na-arte/

Com a ida à Berlim, a ideia é que Thaís consiga sondar possibilidades de cooperações internacionais no campo audiovisual entre Brasil e Alemanha. A viagem seria um pontapé inicial para abrir canais de comunicação entre os festivais de cinema alemães e a produção cinematográfica recifense, firmando possíveis parcerias, como por exemplo, o intercâmbio de filmes e de realizadores audiovisuais da Alemanha para o Brasil.

Além de Thaís Vidal, o CCBA apoiou a ida de Lorenna Rocha (pesquisadora, crítica cultural e curadora) à Berlinale. Este ano, Lorenna foi selecionada para o Berlinale Talents – programa de desenvolvimento de talentos do Festival Internacional de Cinema de Berlim (https://www.berlinale-talents.de ).

Dentro do programa, a pesquisadora vai participar de uma formação de crítica cinematográfica junto com pessoas de todo o mundo. A ideia da formação é que os participantes desenvolvam a escrita através das aulas e que realizem uma cobertura crítica do festival publicando textos no site: https://www.talentpress.org/

Recentemente, um dos festivais que Lorenna participou enquanto curadora foi o Janela Internacional de Cinema do Recife. Com o apoio oferecido à Lorenna, o CCBA espera contribuir também com a curadoria da programação do Janela Internacional deste ano (2023).

Confira o site da Berlinale: https://www.berlinale.de/en/home.html

Saiba Mais: https://www.goethe.de/prj/hum/pt/deu/ber/24523813.html

BIOGRAFIA

Thaís Vidal

Thaís Vidal (Recife, 1990) é roteirista, produtora e diretora, Mestre em Roteiro audiovisual (2021) pela Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, Cuba. Graduada em Jornalismo (2012) pela UFPE e também Mestre em Planejamento Urbano (2017), cursa atualmente Doutorado em Cinema (2020-2024) pela mesma instituição. Em 2014, lançou seu primeiro curta como roteirista e diretora, o documentário Fora da Ordem. Em 2015, fundou a Ponte Produtoras, empresa focada na produção de longas e curtas-metragens de ficção e documentário de jovens realizadoras e realizadores. Produziu filmes exibidos em grandes festivais como Semana da Crítica de Cannes, Locarno Film Festival, La Havana, Festival de Brasília, Festival do Rio, dentre muitos outros, alguns lançados comercialmente. Seu primeiro roteiro de longa, Sensor de Ausência, está em desenvolvimento, na fase de captação de recursos e conta com coprodução da Vitrine Filmes, tendo sido escrito no mestrado em Cuba e assessorado por grandes nomes da EICTV. Thaís faz parte da Rede Paradiso de Talentos. Em 2022, realizou curadoria para o concurso FRAPA de roteiros de longa e colaborou na escrita do roteiro do próximo longa do diretor Marcelo Lordello.

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https://www.instagram.com/vidal.a.thais/

Lorenna Rocha

Historiadora (UFPE), pesquisadora, crítica cultural e programadora. Co-fundadora da INDETERMINAÇÕES https://indeterminacoes.com/ – plataforma de crítica e cinema negro brasileiro (PE/MG). Editora-chefe da camarescura – estudos de cinema e audiovisual (PE). Integrou a curadoria da edição especial do Janela Internacional de Cinema do Recife (2022) e das duas últimas edições do FestCurtas BH (2021, 2022). Desde 2019, ministra cursos e oficinas acerca dos cinemas e teatros negros brasileiros e da crítica.

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Berlinale 70: uma edição corajosa em meio a intempéries

Days (Tsai Ming-Liang, 2020)

A 70ª Berlinale iniciou em meio a intempéries de vários níveis, do temor sobre o coronavírus (o júri do prêmio Teddy, por exemplo, teve ausente um de seus jurados, chinês, ficando desfalcado) a mudanças de infraestrutura causadas por revisões orçamentárias e reformas na região da Potsdamer Platz, base do festival. Na quarta antes da abertura, um atentado da extrema direita em Hanau, próxima a Frankfurt, retomou fantasmas. Semanas antes, a revelação de que Alfred Bauer, importante ex-diretor já falecido do festival, fora ligado ao nazismo, pôs o festival em controverso retrospecto. O prêmio que há 33 anos levava seu nome foi cancelado pelos novos diretores, Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian.

Em conversa com críticos alemães, para mim ficou nítida certa desconfiança, por parte da imprensa local, diante dos rumos que os novos diretores viriam dar ao festival. Rissenbeek, holandesa, vinha há alguns anos à frente da agência alemã German Films, assumindo a direção executiva da Berlinale. Chatrian, italiano, há seis dirigia o Festival de Locarno, convidado para a direção artística em Berlim. A lista de programação divulgada já deixava claro que certo capital simbólico de mercado por aqui, neste festival de maior magnitude que o suíço, somava-se a certo prestígio cultivado por Chatrian junto a alguns setores artísticos. Após os dez dias de Berlinale, ficou evidente que o perfil de Locarno, que vinha se firmando como festival atento, arriscado e arrojado em termos curatoriais, ganhou readequação na infraestrutura maior de Berlim – ainda que esta mesma tenha sido reduzida, de cerca de 400 para 350 filmes. Considerada por alguns uma Berlinale em tom menor, em geral o festival foi aclamado pela crítica internacional por uma retomada de relevância artística, uma amostragem de personalidade curatorial e a busca por um filão próprio que seja capaz de diferenciar Berlim de outros grandes festivais, como Cannes, Sundance e Veneza.

Isto está evidente em certo balanço, na competição oficial, que fez desta edição a mais instigante desde que acompanho as listas da Berlinale: balanço entre certos grandes realizadores de propostas particularmente inventivas, limítrofes, entre cinema de mercado e cinemas pequenos (Tsai Ming-Liang, Hong Sang-soo); apostas em nomes não tão capitalizados de pesquisa própria fresca, saborosa, por vezes surpreendente (como Kelly Reichardt e a parceria entre Caetano Gotardo e Marco Dutra); e um tom político mais direto que aparece em formas mais convencionais de comentário (Gustave Kervern e Benoît Delépine ou o Urso de Ouro Mohammad Rasoulof), traço das últimas seleções que ganhou continuidade. Em linhas gerais, uma seleção de corpo, em que os piores filmes parecem compor mais um desejo de diversidade e cor do que indicam falta de fôlego. É muito saudável que os públicos possam conhecer formas tão diferentes de se fazer cinema numa única seção, que é de todo modo prestigiosa junto às multidões e atrai milhares de pessoas aos palácios do festival.

Para reiterar seu desejo por arrojo e alocar mais filmes envisionados por seu projeto de curadoria, Chatrian criou a seção Encounters, em que 15 filmes em geral um pouco mais idiossincráticos se reuniram como numa espécie de segunda competição para cinemas cujos traços artísticos são imponentes sem que deixem de investir numa experiência forte de sala de cinema. Sendo assim, a Forum, em sua 50ª edição, ficou marcada por um ar independente ainda mais arejado, sendo que ao fim de 10 dias fica claro que aqui a busca por cinemas diferentes ganha agora um tom mais distinto de liberdade, de certo descompromisso com o espetáculo das vogas. Do contrário, há uma crença de que o fazer artístico não é dirigido por laboratórios e mercados, mas por projetos de pensamento essencialmente particulares.

É uma ideia francamente afirmada com a retomada da programação da primeira Forum (cujo nome completo é Forum Internacional do Novo Cinema), em 1971, como comemoração do cinquentenário. Era uma seleção particularmente incrível, de forte inflexão política, com filmes de Chris Marker a Nagisa Oshima, de Med Hondo a Theo Angelopoulus, em contexto de Guerra Fria cujos temas e formas ressoam nas guerras ideológicas atuais, e daí sua revisão ser tão oportuna. Sob a direção também renovada de Cristina Nord, eis a Forum fazendo um grande trabalho de retomada e reafirmação de princípios, dando à Berlinale um ar de constelação. As tantas seções do festival (Panorama, Generation, Berlinale Shorts, Forum Expanded), quase todas passando por reformulações, parecem estar dirigindo a atenção a uma sensibilidade internacional progressista que se traduz não só nas bandeiras, mas também em possíveis formas para as novas batalhas históricas, num generoso retrato dos cinemas do presente. Belo festival.

‘Todos os mortos’: certos movimentos no cinema brasileiro

Exibido na competição oficial, Todos os mortos de Caetano Gotardo e Marco Dutra foi uma seleção dissonante numa bela competição oficial, muito mais instigante que nos anos anteriores, cheia de filmes igualmente idiossincráticos, universos fascinantes e distintos de cinema (pensar, por exemplo, em Days, de Tsai Ming-Liang, Siberia, de Abel Ferrara ou First Cow, de Kelly Reichardt). Em particular, o brasileiro (com co-produção francesa) me parece indicar, com frescor, certos horizontes para o estado da discussão (inclusive formal) em torno da anti-colonialidade nos debates locais.

Se se reivindica um movimento que deixa de ser meramente futurista, como na voga recente, e que ultrapassa o presenteísmo que veio marcando tanto o retrato geral dos nossos filmes em anos anteriores, para então escavar memórias coletivas (note-se a lida com as diásporas africanas ou as vozes queer ou indígenas), Todos os mortos se soma a filmes recentes como Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, ou O nó do diabo (2017), de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Gabriel Martins, Ian Abé, com que se enfrenta a imaginação de época da história geral básica brasileira. Aqui, temos um filme que em particular acessa dados da história oficial, sem que busque neles o mero documento, mas material para reconfiguração artística dos próprios dados: quer dizer, nossas datas históricas são não só o palco para dramaturgias novas como põem em novo diagrama relações simbólicas de classe, raça e gênero a partir de certos interesses propriamente dramáticos e estilísticos, e que têm feito dos cinemas de Caetano Gotardo e de Marco Dutra tão frequentemente instigantes.

A recepção mista em Berlim me parece dever em parte à não familiaridade do olhar estrangeiro com certas intuições que movimentam o filme a partir da domesticidade de costumes e valores. É, assim, muito lindo ter visto esse filme ser exibido num palácio e a multidão de espectadores a ter que se explicar para ele (não é isso o que fazemos diante de um filme?). A ver suas reverberações quando chegar ao Brasil.

Filmar dissidências: entre vida e filme

Las mil y una (Clarisa Navas, 2020)

Na abertura da Panorama, Michael Stütz, novo diretor da seção, reclama pela rebelião. A Panorama é a do discurso direto, a que mais acredita na representação, e na representatividade, na chave da comunicação ampla como maior vocação do cinema. Há uma lista de problemas a ser tocada e de alguma maneira reparada pela imaginação do cinema (isso parece ser uma crença). Em especial, lutas geopolíticas e micropolíticas: trata-se, em geral, da união de bichas e bruxas (ou seja, todas as vidas que escapam ao status quo), em histórias de desobediência contadas com a transparência da tradição clássica em suas versões contemporâneas.

O filme da abertura, Las mil y una, assim se anunciou: filme de diretora argentina – Clarisa Navas – balanceando a hegemonia G na indústria da cultura LGBT, bem como indicando o projeto deste festival em destacar outro ponto de vista que não o do hemisfério norte. Se há algo de maior interesse no filme de Clarisa – e no que significa a escolha deste filme para abrir a mostra – é certa reconexão temporal entre lacração e realismo, digo: se nos últimos tempos vimos muitos cinemas dissidentes apostando no artifício, no bafo, no extemporâneo da performance como alternativa de vida (ou de morte de um mundo para surgimento de outro, como se tem dito no lugar comum das nossas melhores esquerdas), aqui há uma espécie de retorno ao pacto naturalista. Com isso, não significa que se tenha abandonado a reivindicação pelo queer como alternativa à política LGBT (que teria mais a ver com acesso a instituições que com a performatividade de visões outras). Nem que, neste sentido, deixamos a fantasia criadora do palco para retornar à melancolia mitigadora do quarto. Me parece é que talvez a invenção do corpo queer contemporâneo demonstra assimilação pelo olhar comum, já podendo ter educado os corpos do presente como o entendemos, e assim retornar à superfície onde se dá a tessitura do tempo cotidiano.

Do encontro entre fetiche do plano-sequência, retrato das vidas e busca por corpos extraordinários, talvez a assunção de que a educação queer despeja o artifício na sabedoria do tempo; e a dissidência, motor deleuziano, é reconfigurada em código baziniano. Erika Lust encontrou Lucrecia Martel. Observe com calma e verás cada detalhe dos gestos os quais nosso olhar, tendo olhado o bastante, já pôde assimilar, analisar, reexibir para um filme. Não estou falando simplesmente de filmar o cotidiano, mas talvez o contrário, um projeto de cotidianizar o filme: há uma difícil busca racional pelo propriamente pulsional no modo como o filme de Clarisa entende ser capaz de sequestrar gestos de pessoas (no que será um filme portanto em muito coreográfico). Las mil y una termina por localizar e indicar uma disputa que parece central à Panorama e à Berlinale: entre aquilo que preserva o rasgo das liberdades e aquilo que representa, e portanto domestica, vidas dissidentes (para fazer filme).

O sol queima sobre nós: parte do problema


Memory Also Die (Didi Cheeka, 2020)

Um grande sol queimando em looping está projetado no alto, sobre a entrada da área de exposição do Silent Green Kulturquartier, um antigo crematório ao lado de um cemitério no bairro de Wedding, hoje um centro cultural ocupado anualmente pela Berlinale. O filme é The sun, de Kika Thorne (2020), parte da exposição Part of the Problem (ou Parte do Problema), da Forum Expanded, seção do festival que situa o cinema na fronteira com as artes visuais. A sensação de um grande problema geral em curso, queimando sobre as cabeças e que a todos diria respeito, veio dando tom à programação e aos discursos nesta 70ª Berlinale, que busca renovação com a mudança de chefia na maior parte das seções, o que tem sido reiterado artística e diplomaticamente.

Abertura da exposição, quarta-feira 20, um dia antes da sessão de abertura: Marriete Rissenbeek e Carlo Chatrian, novos diretores do festival, incorporam à sua fala o desagravo ao ponto de vista europeu; notam, seria preciso reconhecer as diferenças, as reformas identitárias, os processos coloniais. Uma das coisas mais bonitas nessa lista de obras, que valoriza das inclinações políticas da performance contemporânea às do cinema-ensaio, em longos corredores onde um dia eram depositadas urnas com corpos cremados, é o filme Memory Also Die (ou “A memória também morre”, 2020) de Didi Cheeka, uma breve visita a arquivos que traçam a produção colonial de esquecimento na Nigéria. “Infelizmente, ainda temos mais França que Nigéria aqui, mas um dia isso vai mudar”, diz o diretor do festival.

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