Janela aberta na Berlinale

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Ao contrário de 2015, quando quatro longas foram selecionados, não tivemos filmes pernambucanos na programação do Festival de Berlim. No entanto, o estado esteve representado pelo Janela Internacional de Cinema do Recife, que com o apoio do CCBA, enviou Luís Fernando Moura para conhecer o tradicional evento alemão, um dos mais antigos e importantes do mundo.

Presente de diferentes formas desde a primeira edição, Luís desempenhou no ano passado o importante papel de coordenador de programação do Janela. Encerro minha cobertura da Berlinale 2016 com a entrevista a seguir,  em que Luís fala sobre filmes, observações e conexões que podem repercutir em poucos meses, no Recife.

Esta foi sua primeira Berlinale. Que impressão teve sobre o festival?

Embora tenha sido minha primeira visita ao festival, a Berlinale é, como sabemos, um dos eventos de cinema acompanhados com mais lealdade e dedicação pela imprensa e pela crítica internacional. Mesmo à distância, é possível perceber suas características mais essenciais, e a visita ao festival confirmou várias delas. A programação, que é particularmente extensa e variada, tem como traço forte uma preocupação política que atravessa boa parte dos filmes, como se num permanente posicionamento curatorial do festival frente aos dilemas da política global. Isto se dá fortemente diante de questões geopolíticas mais visíveis no presente, como no caso do debate sobre povos refugiados, que tematizou de várias formas as sessões e é inclusive objeto do vencedor do Urso de Ouro, o italiano “Fuocoammare”. Aliás, o prêmio em si é um claro statement político. Essa postura pode ser percebida também, por exemplo, no caso já tradicional do programa Teddy, seção dedicada a filmes LGBT pioneira, que completou 30 anos com uma retrospectiva muito interessante de cinema queer.

Claro, estar pessoalmente no festival te leva a surpresas: no meu caso, a primeira foi me perceber num ambiente em que a indústria de cinema inteira está reunida. A simples “informação” de que “todos estão na Berlinale” é bem precisa, mas não dá conta de descrever a intensidade real desses encontros ao longo de uma semana que parece durar, no mínimo, umas três (com, como de praxe, pouquíssimas horas de sono). A segunda surpresa é meu souvenir pessoal: me deparar com um parque realmente deslumbrante de cinemas de rua. Eu recomendo a todos que puderem ir à Berlinale que experimentem sair da Potsdamer Platz, onde está o centro logístico e midiático do festival, e circular um pouco pelos cinemas que ficam alguns minutos mais distantes: o Kino International, a Akademie der Künste, o Delphi Filmpalast, o Zoo Palast, o Friedrichstadt-Palast, entre tantos outros. Cada novo cinema é um novo deslumbre com a paisagem exterior e interior das salas. Isso deveria inspirar a forma com que vivemos com os filmes em qualquer lugar.

Que filmes mais te marcaram? Algum deles poderá ser visto no Janela de Cinema?

Os dias depois de um festival vão te dando pistas daquilo que realmente fica como memória de uma experiência forte. Posso te dizer que, de imediato, tive um belo e inesperado encontro com o filme novo de Terrence Davies, “A Quiet Passion”, que passou fora de competição. É uma biopic de Emily Dickinson com uma profunda consciência do humor e do melodrama. Um filme simples e que preenche uma sala de cinema como poucos fazem. Os filmes que me deram a sensação de um grande momento estavam espalhados nas diversas mostras. Pode ser um clássico de 1974 restaurado como o alemão “Berlin-Harlem”, de Lothar Lambert, que passou na retrospectiva Teddy, ou alguns filmes novos supostamente menores, como o longa “Muito Romântico”, dos brasileiros Gustavo Jahn e Melissa Dulius, na programação do Forum Expanded. Há ainda as experiências épicas, como as 8 horas do filipino Lav Diaz em “A Lullaby to the Sorrowful Mystery”; impossível passar incólume. O Janela é um festival que acolhe filmes diversos em muitos sentidos, então certamente cada filme que achamos especial, seja um grande lançamento ou um filme pequeno e barato, pode encontrar um espaço na nossa programação. Mas é cedo ainda para bater martelos. Temos oito meses até a próxima edição. É importante, terminado o festival, acompanhar a trajetória dos filmes que nos chamam a atenção e ir descobrindo outros. Aí sim poderemos ter mais clareza para fazer escolhas e convites.

Em um festival com centenas de filmes como a Berlinale, que estratégia você usa para descobrir as obras mais interessantes?

A primeira coisa que tenho em mente é não ter receio de correr alguns riscos, ou vou me privar de fazer descobertas. É importante então circular pelas diversas mostras. Claro, há aqueles filmes imperdíveis, de cineastas que já acompanhamos. Há também aqueles filmes, pequenos ou grandes, sobre os quais se cria um burburinho na imprensa, na crítica e nos corredores do festival. Talvez isto seja algo importante: abrir os ouvidos durante o festival, trocar impressões com conhecidos entre uma sessão e outra. Alguém sempre tem sua própria descoberta pra compartilhar, e a Berlinale tem muitas reprises para a maior parte dos filmes. Provavelmente você vai ter mais uma chance de dar uma olhada naquele desconhecido que seu amigo elogiava na noite anterior. Vai lá e, já depois das 22h, após 12 horas de filmes, se desloca para ver um bonito longa estudantil como “A Road”, de um japonês de 21 anos. Ou vai acompanhar a sensacional programação da Semana da Crítica, que corre paralela à Berlinale. Mas, pelo que vi, o contrário também é verdade: há sempre um ou outro filme que você queria ver desde o início mas, feitas as escolhas necessárias, você vai ter de abrir mão. Pelo menos durante os dez dias de festival… Afinal, são centenas de filmes e apenas 24 horas por dia.

O Janela de Cinema tem em comum com o Festival de Berlim a programação simultânea e o olhar para o cinema do mundo. Que outras semelhanças e diferenças você enxerga entre os dois festivais?

De fato, tanto o Janela quanto a Berlinale tem como característica forte uma busca por olhares diversos, e frequentemente isto implica também origens diversas dos filmes. Ao mesmo tempo, ambos os festivais parecem se deixar contaminar pela vida das cidades onde estão inseridos, convidando o público a frequentar seus cinemas e tornando a sala de cinema um lugar de encontro entre vida local e imagens estrangeiras que, ali no festival, têm um impacto particular a essa relação. Naturalmente, os dilemas políticos de cada cidade terminam dando a tônica também de cada um dos festivais como manifesto público: a Berlinale, marcada pelas diversas fraturas da história europeia, que são cicatrizes fortes em Berlim e se manifestam na programação como uma plataforma de reconciliação. Ali se crê mesmo que os filmes podem, diretamente, mudar o mundo. Já o Janela parece tomar parte numa redescoberta do espaço público, surrado por processos de exploração típicos da América Latina, e que ganham genética própria numa cidade como o Recife. Essa descoberta tem como ressonância muito cristalina a evocação do cinema como caminho para que quebremos nossos próprios muros e possamos nos deslocar por outras paisagens e experiências.

Por outro lado, a Berlinale está no centro da indústria. É um evento gigante com muitos, muitos filmes. Nosso papel no Janela é mais modesto: queremos apontar um ou outro filme, mais de perto, e nos debruçar detidamente sobre cada um dos nossos visitantes. Potencializar mesmo o que oferece cada ponto de vista, cada sessão de cinema.

O barco e o olhar

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Selecionado para a seção Forum,  “Havarie” foi a mais amarga e desafiadora das sessões que assisti nesta Berlinale. O diretor alemão Philip Scheffner formulou uma abordagem à altura da gravidade da atual crise dos refugiados, levantando questionamentos que destoam do ranço esteril e piegas geralmente dedicados ao tema.

Para tanto, “Havarie” (avaria, em alemão) utiliza nada mais do que um vídeo amador e sinais de rádio para promover um tour de force onde a criação cinematográfica permite a percepção tanto da condição de fragilidade dos que enfrentam a travessia do Mediterrâneo, quanto de quem os observa, em imagens compartilhadas em outros mares, a internet.

Afeito à manipulação intelectual de imagens de arquivo, Scheffner disseca a tragédia em si, nos confinando em dispositivo formado por um vídeo do Youtube revertido em sua banalidade pelo efeito super slow motion (na proporção de um frame por segundo) e uma banda sonora formada por transmissões de rádio trocados entre um navio de refugiados e equipes de resgate.

Feito à distância, a partir de um navio cruzeiro, o vídeo tenta enquadrar um barco de refugiados à espera de resgate na costa espanhola.  O aspecto semicongelado da imagem causa estranhamento e produz náusea ao reduzir o barco a um borrão que assume na tela novas coordenadas.

“Havarie” é a síntese entre fantasmagoria exterior (visual, distante) e interior (sonora, subjetiva). Duas imagens imperfeitas, sujas e longe da alta definição do cinema profissional. É a baixa resolução como estética do abominável. E o tempo, severamente reconstruído, como carrasco de uma absurda sentença de morte.

Sentença que, transposta pelo filme, nos condena a compartilhar um olhar superior que recai milhares de vezes, como navalhas, sobre aquelas pessoas.

* visto no CinemaxX 8, Potsdamer Platz, em 20/02/2016

 

Fogo no mar

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A premiação da Berlinale foi anunciada no último sábado, mas o festival terminou oficialmente no domingo, com o Kinotag. É  o dia do público, uma ótima forma de despedida para um evento que, apesar de investir no tapete vermelho, tem nas ruas a melhor vocação. Os números finais impressionam: 337 mil ingressos vendidos, um novo recorde nos 66 anos de festival..

O Kinotag também a última chance de ver filmes perdidos durante a semana, também conhecida como repescagem. Eu mesmo assisti quatro, em salas distantes do QG do festival (Potsdamer Platz), em deslocamentos que permitem sentir melhor a vibração da cidade.

Berlim muda rápido demais. Nos últimos anos, entre bairros gourmetizados, terrenos baldios e gruas de construção, foi possível observar o aumento do custo de vida e mais estrangeiros (os “auslander”) nas ruas e estações de metrô. Este ano encontrei alguns acampados em espaços públicos, à noite, em torno de fogueiras, como no filme que Felipe Bragança, “Escape from my eyes”, curta exibido no Forum da Berlinale 2015 que dramatiza o assédio de uma voluntária branca por um refugiado negro.

Somente ano passado a Alemanha recebeu mais de um milhão de pedidos de asilo. É o maior fluxo de imigrantes no país desde o fim da Segunda Guerra. Há mais refugiados sírios ali do que em toda a Europa. A direita voltou a crescer. Aumentam casos de xenofobia. O mais recente aconteceu na Saxônia, onde prédios que receberiam refugiados pegaram fogo, ao mesmo tempo em que a população local tentou impedir a ação dos bombeiros.

Daí se entende a Berlinale ter selecionado tantos filmes, estimulado debates e atividades em apoio a refugiados. Vencedor do Urso de Ouro, o documentário “Fuocoammare” narra situações paralelas na ilha italiana de Lampedusa: o influxo de centenas de milhares de refugiados que tem nela a porta de entrada para a Europa; e o cotidiano de uma família local, sustentada pela pesca.

O título alude aos acidentes que acontecem pelo combustível expelido pelo motor a diesel nas roupas dos refugiados. O diretor, Gianfranco Rossi, o pinçou da música popular  “Fuocoammare”, pedida no filme por uma senhora que cozinha enquanto roga para que o mau tempo permita que o marido possa pescar. A mesma rádio atualiza os ouvintes sobre os refugiados. A senhora lamenta com distanciamento, da sua cozinha, como se a tragédia não fosse no próprio quintal.

Se os filtros da realidade não permitem, o filme estabelece as conexões.  Como no momento em que alterna entre a rotina policial e médica de triagem dos que cruzaram o Mediterrâneo e sobreviveram em condições sub-humanas, enquanto acompanha um garoto nativo vai à escola, ao médico e ensina um amigo a fabricar uma atiradeira. O menino ajusta a mira, tensiona e solta o elástico, em sons cortantes que dilaceram qualquer ingenuidade.

* filme visto no Haus Der Berliner Festpiele, Charlottenburg-Wilmersdorf, em 21/02/2016

Berlinale 66 – os premiados

"A lullaby to the sorrowful mistery", de Lav Diaz

“A lullaby to the sorrowful mistery”, de Lav Diaz: Prêmio Alfred Bauer para filmes que abrem novas perspectivas

O Urso de Ouro foi para o italiano “Fuocoammare“, de Gianfranco Rosi, documentário sobre fugitivos que tentam entrar na Europa pela Ilha de Lampedusa. É incomum um filme de não-ficção ganhar o prêmio máximo em grandes festivais. É verdade que o também italiano “César deve morrer”, dos irmãos Taviani levou o Urso de Ouro em 2013, mas ali havia uma proposta híbrida de encenação com presidiários. E “Fuocoammare” é um filme 100% documental, que alterna entre o cotidiano de um morador da ilha, um garoto italiano alheio à estas situações e o resgate e triagem de refugiados africanos.

“Fuocoammare” não é o melhor filme da competição oficial da Berlinale e tampouco sobre a crise dos refugiados (dos que vi, gosto muito de “Havarie“). No entanto este é o principal tema não apenas da Berlinale, mas da Alemanha, o país que mais recebeu asilados na Europa. E Ursos políticos tem sido comuns nos últimos anos. Presidente do júri, Meryl Streep é uma atriz politicamente engajada, então entende-se a decisão, que privilegiou a dimensão estética nos demais prêmios.

É o caso da produção filipina com oito horas nada cansativas de duração, “A lullaby to the sorrowful mistery”, de Lav Diaz, que ganhou o Prêmio Alfred Bauer para filmes que abrem novas perspectivas. Em preto-e-branco fantástico, o filme narra a revolução filipina de 1896-98. Entre fantasmas, mitos e consequências, há belas reflexões sobre criação artística e o cinema enquanto ilusão compartilhada.

Independente do reconhecimento do júri já havia sido um grande acerto e uma demonstração de coragem por parte do festival em tê-lo selecionado para a mostra oficial competitiva. Já que o circuito comercial de cinemas jamais programará um filme com tamanha duração, cabe aos eventos – e posteriormente à internet, disponibilizar e repercutir esta obra cujo poder é, da primeira à última instância, o de renovar a crença na imagem cinematográfica.

Pessimistas (“Morte em Sarajevo” e o polonês “United States of Love”) ou otimistas (“L’avenir” e “Koletivitet”), os premiados refletem a seleção deste ano, formada por filmes que, espelhos ou martelos, recaem sobre mundos em convulsão.

Lista dos premiados

Mostra Oficial de Longas
Urso de Ouro: Fuocoammare (Itália), de Gianfranco Rosi
Grande Prêmio do Júri: Morte em Sarajevo (França, Bósnia e ), de Danis Tanović
Prêmio Alfred Bauer para filme que abre novas perspectivas: A Lullaby to the Sorrowful Mystery (Filipinas), de Lav Diaz
Direção: Mia Hansen-Løve por “L’avenir” (França)
Atriz: Trine Dyrholm por “Kollektivet” (Dinamarca), de Thomas Vinterberg
Ator: Majd Mastoura por “Hedi” (Tunísia), de Mohamed Ben Attia
Roteiro: Tomasz Wasilewski por “United States of Love” (Polônia), de Tomasz Wasilewski
Urso de Prata pela excepcional contribuição artística: Mark Lee Ping-Bing, pela fotografia de “Crosscurrent” (China), de Yang Chao
Melhor filme de estreia (€ 50,000 pelo GWFF): “Hedi” (Tunísia), de Mohamed Ben Attia

Competitiva de Curtas
Urso de Ouro: “Balada de um Batráquio” (Portugal), de Leonor Teles
Urso de Prata (prêmio do júri): “A Man Returned” (Inglaterra, Dinamarca, Holanda), de Mahdi Fleifel

Informações completas no site da Berlinale

Hotel Europa

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E a Berlinale vai chegando ao fim. Enquanto não sai o resultado do júri oficial, comissões paralelas anunciam os seus preferidos. Organizado pela Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), o júri da crítica elegeu “Morte em Sarajevo”, de Danis Tanović, como o melhor da mostra oficial. Em 2013 o diretor bósnio já havia ganhado o prêmio especial do júri por “Um episódio na vida de um catador de ferro”.

Tanović volta a Berlim com uma produção França/Bósnia/Herzegovina que, a partir da história recente destes países, traça um retrato da Europa hoje.

O filme é ambientado em um grande hotel, que nervosamente se organiza para receber autoridades para atividades em torno do centenário da morte de Franz Ferdinand, o herdeiro do império austro-húngaro, assassinado em Sarajevo por um estudante sérvio. Ao episódio é atribuído o início da primeira guerra mundial.

A ação é paralela: enquanto o presidente da União Europeia repassa discurso na suíte presidencial e a TV entrevista especialistas na cobertura,  empregados do hotel planejam deflagrar uma greve.

Eles estão há dois meses sem salário, enquanto o diretor do hotel lida com credores para manter seu negócio. A situação sai de controle, dando a entender que democracia e direitos humanos são meros recursos de retórica.

Tanović fez um filme entre o humor e o cinismo, explorando a tese de que a história se repete, agora sob o registro de câmeras de TV ou de vigilância.

* visto no Berlinale Palast, Potsdamer Platz, em 15/02/2016

“Muito romântico” e a arte de enxergar o invisível

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Melissa Dullius e Gustavo Jahn estrearam hoje seu primeiro longa metragem, “Muito Romântico”, na seção Forum Expanded da Berlinale. No filme, o casal de brasileiros radicado há dez anos em Berlim faz de si e da própria história a matéria prima para uma obra onde o suporte analógico é tão condicionante para a narrativa quanto o próprio conteúdo.

Em 2007, quando chegaram a Berlim, Melissa e Gustavo criaram o selo Distruktur, tendo alguns de seus trabalhos exibidos em festivais brasileiros. Eles já haviam participado da Berlinale com o curta “Triangulum” (2009, no mesmo Forum Expanded) e como parte do elenco de “Os residentes”, de Tiago Mata Machado (Mostra Forum, 2011). Em 2006 Melissa também participou do programa Talents, voltado a jovens profissionais do cinema. Agora, seu primeiro longa é selecionado pelo festival.

De cruzar os mares em navio cargueiro a diferentes apartamentos alugados na capital alemã,”Muito romântico”  reinventa  a trajetória de Melissa e Gustavo na medida em que suas figuras encontram dimensão própria na emulsão química do celuloide reordenado na mesa de montagem.

Música, literatura e artes plásticas potencializam a experiência, que ganha sentido no deslocamento geográfico e existencial. O filme se constrói sem muitas regras, tendo o fluxo de cores e texturas do suporte analógico como propulsor principal, e a condição do estrangeiro como elemento libertador e necessário para quebrar o automatismo do olhar. E com isso, enxergar o invisível.

* visto no CinemaxX 8, Postsamer Platz, em 15/02/2016

Mãe só há uma

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Para quem já conhece o trabalho de Anna Muylaert, é impossível assistir “Mãe só há uma” sem retornar a “Que horas ela volta?”. Neles a diretora paulista adota abordagens diferentes para criticar o mesmo universo: o da classe média tradicional brasileira.

Agora é possível sentir a urgência de ampliar a denúncia da família conservadora como dispositivo idiotizante e aprisionador, colocada anteriormente com uma precisão formal dispensada por Anna em sua nova obra, que traduz a irreverência e liberdade sexual da juventude em movimentos de câmera instáveis, imprevisíveis, conferindo ao filme leveza e vivacidade que jamais seriam alcançados pelos planos fixos, penumbras e tons pasteis da produção anterior.

A mudança estética remete a uma interessante inversão de pontos de vista. Se Jéssica é o elemento estranho a invadir e desestabilizar o campo sóbrio e minado da burguesia paulistana, em “Mãe só há uma”, uma família parecida invade o mundo liberto de Pierre (Naomi Nero), jovem transgênero e suburbano, que vive a plenitude dos 17 anos na base do sexo, drogas e rock’n’roll.

Um dia ele descobre que seu nome não é Pierre: recém-nascido, foi roubado na maternidade. Reintegrado aos pais biológicos (Matheus Nachtergaele e Dani Nefusi), o garoto se recusa a entrar na gaiola oferecida pelos pais. Questiona o jogo da família tradicional e desafia visceralmente limites de convivência,  permitindo ao filme bons momentos, tanto de humor quanto de tensão dramática.

Nas cinco sessões promovidas pela Berlinale, “Mãe só há uma” recebe votos do público, que em 2015 elegeu “Que horas ela volta?” como o melhor da Mostra Panorama. Além disso, ele concorre ao Teddy Awards, dedicado a filmes de temática gay, independente da mostra. Não será surpresa se ganhar.

* Visto no Colloseum Kino, Prenzlauerberg, em 17/02/2016

Chi-Raq / Where to invade next

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Disse e repito: tomadas de consciência, um dos temas desta Berlinale.

O desenho de armas formando o mapa dos Estados Unidos é a imagem de abertura para “Chi-Raq”, o novo filme de Spike Lee, exibido ontem, fora de competição, na Mostra Oficial da Berlinale. Em seguida surge a informação de que no sudoeste de Chicago o número de assassinatos nos últimos 15 anos supera o de soldados norte-americanos nas guerras do Afeganistão e Iraque.

Daí o apelido, adotado também pelo filme, que transpõe o texto “Lysistrata”, de Aristófanes para o momento atual da tragédia afro-americana.  Chi-raq é rapper e líder dos espartanos (Nick Canon) que transformam o sudoeste da cidade em zona de guerra. Ciclope (Wesley Snipes) comanda os troianos. Samuel Jackson é um personagem à parte da trama, que contextualiza as situações.

A postura crítica de Spike Lee não é voltada apenas aos brancos ricos e conservadores, mas aos próprios negros, que entram no jogo da violência. Tem sido assim desde que Spike Lee lançou as bases de seu cinema combativo. Já na abertura de “Faça a coisa certa”, a atriz Rosie Perez dança ao som de “Fight the Power”. E são exatamente as mulheres quem iniciam a insurreição, deflagrada pela morte de uma criança negra, assassinada por uma bala perdida.

Orientada por uma vizinha intelectual (Angela Bassett), Lysistrata  (“Teyonah Parris”, de Dear White People), a namorada de Chi-Raq, inicia uma greve de sexo que se espalha pelo planeta. “No peace, no pussy” (há uma sequência no Brasil, em que garotas gritam em SP “sem paz, sem xana”). Simplista ou não, o posicionamento provoca boas discussões sobre gênero, raça e exclusão social, não apenas nos Estados Unidos.

Interessante observar Lysistrata  como uma nova encarnação de Foxy Brown, personagem símbolo do Blaxploitation nos anos 1970, referência básica do ativismo negro na seara cinematográfica. No entanto, a forma adotada por Spike Lee é diversa, se valendo de recursos do melodrama e da comédia teatral para obter o efeito contagiante pretendido e por vezes alcançado, principalmente nas performances musicais.

Invasões bárbaras – Logo após “Chi-Raq” foi exibido para a imprensa “Where to invade next”, novo panfleto de Michael Moore sobre as precariedades do sistema social norte-americano. Há questões parecidas com as levantadas por Spike Lee, como o culto às armas e o massacre da população negra, estabelecendo pontos de vista absolutamente díspares (Moore é americano branco que resolveu colocar a cabeça fora da manada) sobre os mesmos problemas.

Sob a metáfora da guerra, a ideia de Moore é “invadir” outros países em busca de repatriar boas ideias surgidas nos próprios EUA, mas nunca colocadas na prática por lá. De forma bastante manipulativa e por vezes cômica, o filme quer evidenciar as contradições de um país que se autoproclama o melhor do mundo, listando exemplos de como a Itália, França, Alemanha, Noruega, Islândia e a Tunísia estão à frente nos direitos trabalhistas, de gênero, das crianças e dos presidiários.

Se comparar com a Europa é algo comum na classe média brasileira, mas notoriamente raro nos EUA. Independente da eficácia ou superficialidade do  seu discurso, Moore assume postura otimista. Usa o exemplo do Muro de Berlim e diz que vê seus filmes como martelos que em algum momento podem abrir buracos nos muros. Em termos, ele tem razão. Martelos não são nada sutis.

* Filmes vistos no CinemaxX 9, Potsdamer Platz, em 16/02/2016

O que está por vir

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Um dos temas da Berlinale este ano parece ser a tomada de consciência como prerrogativa para mudanças pessoais ou coletivas – quando não as duas.

Em “L’ avenir” (O que está por vir), a diretora francesa Mia Hansen-Løve exercita um olhar generoso sobre uma mulher bastante ativa (Isabelle Huppert), professora de filosofia sufocada entre compromissos acadêmicos e familiares.

O tom nao é melancólico nem otimista, mas de afetividade tranquila, o filme situa a protagonista no espectro entre a Geração Z e a de Maio de 68.

Entre lidar com alunos em greve, um casamento em crise e cuidar da mãe idosa, Nathalie encontra seu devir e nele a oportunidade de emancipação. Os encontros com o jovem pupilo (Roman Kolinka) inspiram horizontes e apontam para um novo ciclo.

O mundo não está bem, e a imagem de Isabelle Huppert correndo angustiada pelas ruas de Paris é uma boa forma de representar isso.

Mas por outro lado está em movimento ininterrupto, e Rousseau, Schopenhauer, Proudhon e música folk surgem entre as tantas referências para o reencontro existencial.

Parece complicado mas Hansen-Løve teve a sensibilidade de colocar pontos de interrogação nos lugares certos, gerando um filme fluente, ao mesmo tempo profundo e acessível.

* Visto no Berlinale Palast, Potsdamer Platz, em 13/02/2016

Boris sem Beatrice / May we sleep soundly

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Denis Côté volta à competição oficial de Berlim com “Boris sem Beatrice”. Assim como em “Vic + Flo viram um urso”, que rendeu a ele o prêmio melhor direção em 2013, Côté volta a olhar para um casal no campo, como fossem animais de laboratório.

O filme inicia com um helicóptero que voa rente ao chão, tendo à sua frente um homem de meia idade que o encara de volta, impassível.

Este homem é Boris, industrial russo arrogante, infiel e vaidoso. E o helicóptero pode ser o próprio filme, que observa e ameaça, ressaltando o som frio e cortante das hélices.

O realismo é quebrado quando entra em cena um senhor misterioso, cínico e teatral, que enumera os defeitos de Boris e condiciona sua  mudança de comportamento à melhora da sua esposa Beatrice, em depressão.

Ao inserir o artifício de um personagem onisciente, que julga personagens e interfere no próprio enredo, a sanha manipulativa de Côté aponta para uma peculiar descrença no ser humano, refém das tiranias do ego.

A possibilidade de redenção vem acompanhada de uma instabilidade narrativa, de estranhamento e desconforto proporcionais à realidade com que dialoga.

A doentia postura dos donos do poder fica ainda mais evidente quando em contexto com a grandiosidade dos landscapes canadenses, para onde derivam os olhos a cada encruzilhada existencial.

Semana da Crítica – Denis Côté também apresentou um novo curta, exibido ontem na 2ª Semana da Crítica de Berlim. Trata-se de um pequeno evento paralelo e independente, um contraponto provocativo ao gigantismo da Berlinale.

“May we sleep soundly” consiste em planos subjetivos de um suposto invasor de casas no inverno canadense.  Uma câmera trêmula e afoita entra e sai de ambientes privados, onde pessoas dormem. Gatos e cães observam em silêncio, como cúmplices.

O desenho de som evidencia passos, respiração e outros movimentos do invasor, o que aumenta o sentimento de perigo e medo de que algo ruim acontece no momento de nossa maior vulnerabilidade – o sono.

* “Boris sem Beatrice visto no CinemaxX 9, Postdamer Platz, em 12/02/2016
** “May we sleep soundly” visto no Hackescher Höfe Kino 1, Mitte, em 14/02/2016

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