Ao contrário de 2015, quando quatro longas foram selecionados, não tivemos filmes pernambucanos na programação do Festival de Berlim. No entanto, o estado esteve representado pelo Janela Internacional de Cinema do Recife, que com o apoio do CCBA, enviou Luís Fernando Moura para conhecer o tradicional evento alemão, um dos mais antigos e importantes do mundo.
Presente de diferentes formas desde a primeira edição, Luís desempenhou no ano passado o importante papel de coordenador de programação do Janela. Encerro minha cobertura da Berlinale 2016 com a entrevista a seguir, em que Luís fala sobre filmes, observações e conexões que podem repercutir em poucos meses, no Recife.
Esta foi sua primeira Berlinale. Que impressão teve sobre o festival?
Embora tenha sido minha primeira visita ao festival, a Berlinale é, como sabemos, um dos eventos de cinema acompanhados com mais lealdade e dedicação pela imprensa e pela crítica internacional. Mesmo à distância, é possível perceber suas características mais essenciais, e a visita ao festival confirmou várias delas. A programação, que é particularmente extensa e variada, tem como traço forte uma preocupação política que atravessa boa parte dos filmes, como se num permanente posicionamento curatorial do festival frente aos dilemas da política global. Isto se dá fortemente diante de questões geopolíticas mais visíveis no presente, como no caso do debate sobre povos refugiados, que tematizou de várias formas as sessões e é inclusive objeto do vencedor do Urso de Ouro, o italiano “Fuocoammare”. Aliás, o prêmio em si é um claro statement político. Essa postura pode ser percebida também, por exemplo, no caso já tradicional do programa Teddy, seção dedicada a filmes LGBT pioneira, que completou 30 anos com uma retrospectiva muito interessante de cinema queer.
Claro, estar pessoalmente no festival te leva a surpresas: no meu caso, a primeira foi me perceber num ambiente em que a indústria de cinema inteira está reunida. A simples “informação” de que “todos estão na Berlinale” é bem precisa, mas não dá conta de descrever a intensidade real desses encontros ao longo de uma semana que parece durar, no mínimo, umas três (com, como de praxe, pouquíssimas horas de sono). A segunda surpresa é meu souvenir pessoal: me deparar com um parque realmente deslumbrante de cinemas de rua. Eu recomendo a todos que puderem ir à Berlinale que experimentem sair da Potsdamer Platz, onde está o centro logístico e midiático do festival, e circular um pouco pelos cinemas que ficam alguns minutos mais distantes: o Kino International, a Akademie der Künste, o Delphi Filmpalast, o Zoo Palast, o Friedrichstadt-Palast, entre tantos outros. Cada novo cinema é um novo deslumbre com a paisagem exterior e interior das salas. Isso deveria inspirar a forma com que vivemos com os filmes em qualquer lugar.
Que filmes mais te marcaram? Algum deles poderá ser visto no Janela de Cinema?
Os dias depois de um festival vão te dando pistas daquilo que realmente fica como memória de uma experiência forte. Posso te dizer que, de imediato, tive um belo e inesperado encontro com o filme novo de Terrence Davies, “A Quiet Passion”, que passou fora de competição. É uma biopic de Emily Dickinson com uma profunda consciência do humor e do melodrama. Um filme simples e que preenche uma sala de cinema como poucos fazem. Os filmes que me deram a sensação de um grande momento estavam espalhados nas diversas mostras. Pode ser um clássico de 1974 restaurado como o alemão “Berlin-Harlem”, de Lothar Lambert, que passou na retrospectiva Teddy, ou alguns filmes novos supostamente menores, como o longa “Muito Romântico”, dos brasileiros Gustavo Jahn e Melissa Dulius, na programação do Forum Expanded. Há ainda as experiências épicas, como as 8 horas do filipino Lav Diaz em “A Lullaby to the Sorrowful Mystery”; impossível passar incólume. O Janela é um festival que acolhe filmes diversos em muitos sentidos, então certamente cada filme que achamos especial, seja um grande lançamento ou um filme pequeno e barato, pode encontrar um espaço na nossa programação. Mas é cedo ainda para bater martelos. Temos oito meses até a próxima edição. É importante, terminado o festival, acompanhar a trajetória dos filmes que nos chamam a atenção e ir descobrindo outros. Aí sim poderemos ter mais clareza para fazer escolhas e convites.
Em um festival com centenas de filmes como a Berlinale, que estratégia você usa para descobrir as obras mais interessantes?
A primeira coisa que tenho em mente é não ter receio de correr alguns riscos, ou vou me privar de fazer descobertas. É importante então circular pelas diversas mostras. Claro, há aqueles filmes imperdíveis, de cineastas que já acompanhamos. Há também aqueles filmes, pequenos ou grandes, sobre os quais se cria um burburinho na imprensa, na crítica e nos corredores do festival. Talvez isto seja algo importante: abrir os ouvidos durante o festival, trocar impressões com conhecidos entre uma sessão e outra. Alguém sempre tem sua própria descoberta pra compartilhar, e a Berlinale tem muitas reprises para a maior parte dos filmes. Provavelmente você vai ter mais uma chance de dar uma olhada naquele desconhecido que seu amigo elogiava na noite anterior. Vai lá e, já depois das 22h, após 12 horas de filmes, se desloca para ver um bonito longa estudantil como “A Road”, de um japonês de 21 anos. Ou vai acompanhar a sensacional programação da Semana da Crítica, que corre paralela à Berlinale. Mas, pelo que vi, o contrário também é verdade: há sempre um ou outro filme que você queria ver desde o início mas, feitas as escolhas necessárias, você vai ter de abrir mão. Pelo menos durante os dez dias de festival… Afinal, são centenas de filmes e apenas 24 horas por dia.
O Janela de Cinema tem em comum com o Festival de Berlim a programação simultânea e o olhar para o cinema do mundo. Que outras semelhanças e diferenças você enxerga entre os dois festivais?
De fato, tanto o Janela quanto a Berlinale tem como característica forte uma busca por olhares diversos, e frequentemente isto implica também origens diversas dos filmes. Ao mesmo tempo, ambos os festivais parecem se deixar contaminar pela vida das cidades onde estão inseridos, convidando o público a frequentar seus cinemas e tornando a sala de cinema um lugar de encontro entre vida local e imagens estrangeiras que, ali no festival, têm um impacto particular a essa relação. Naturalmente, os dilemas políticos de cada cidade terminam dando a tônica também de cada um dos festivais como manifesto público: a Berlinale, marcada pelas diversas fraturas da história europeia, que são cicatrizes fortes em Berlim e se manifestam na programação como uma plataforma de reconciliação. Ali se crê mesmo que os filmes podem, diretamente, mudar o mundo. Já o Janela parece tomar parte numa redescoberta do espaço público, surrado por processos de exploração típicos da América Latina, e que ganham genética própria numa cidade como o Recife. Essa descoberta tem como ressonância muito cristalina a evocação do cinema como caminho para que quebremos nossos próprios muros e possamos nos deslocar por outras paisagens e experiências.
Por outro lado, a Berlinale está no centro da indústria. É um evento gigante com muitos, muitos filmes. Nosso papel no Janela é mais modesto: queremos apontar um ou outro filme, mais de perto, e nos debruçar detidamente sobre cada um dos nossos visitantes. Potencializar mesmo o que oferece cada ponto de vista, cada sessão de cinema.
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