O curador e pesquisador Luís Fernando Moura é o autor dos textos que serão publicados no site da Conexão Berlinale nos próximos dias. Antes de embarcar para a terceira experiência dele no Festival Internacional de Cinema de Berlim, o pernambucano falou sobre as expectativas em relação ao evento.

Luís Fernando Moura também comentou sobre as viagens anteriores, também realizadas por uma parceria entre o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA) e o Festival Internacional Janela de Cinema do Recife, do qual ele é coordenador de programação. Características dos dois eventos fazem parte da entrevista a seguir.

EUGÊNIA BEZERRA – Poderia falar sobre sua relação com o Festival de Berlim e relembrar um pouco da experiência anterior de parceria entre o Janela com o CCBA?

LUÍS FERNANDO MOURA – É a minha terceira vez no festival, após as edições de 2016 e 2017, sempre em parceria entre o Janela e o CCBA. Dessas viagens vieram descobertas de filmes e contatos com pessoas que vêm se refletindo no Janela desde então, às vezes por meio de pontes cujos efeitos são diretos.

Em 2016, conheci 1 Berlin-Harlem, de Lothar Lambert e Wolfram Zobus, no Kino International, uma sala de cinema impressionante na Berlim Oriental. É um filme do underground alemão de 1974 que cria uma narrativa da liberdade no ambiente da Guerra Fria, e que encontrou bem a noção de desobediência que inspirou aquela edição do Janela, daí que terminamos por exibi-lo na mesma cópia em 35mm no Cine São Luiz, em parceria com a Cinemateca Alemã, certamente uma exibição inédita deste realizador anônimo no Brasil, mas de reconhecimento longevo em meio a certa cinefilia alemã interessada nas bordas e nas alternativas da histórica artística. Foi um intercâmbio incomum, eu diria.

Em 2017, Let the summer never come again, algo como um épico errante georgiano-alemão de Alexandre Koberidze, residente em Berlim, tinha estreia mundial na Semana da Crítica de Berlim, evento paralelo ao festival, e depois de ganhar o prêmio do júri no FIDMarseille teve estreia brasileira na competição de longas do Janela, onde foi recebido como descoberta feliz de um filme de amor radical e do trabalho deste diretor jovem. Koberidze veio ao Janela com apoio da German Films, agência parceira com que travamos parcerias nas visitas à Berlinale, e que apoiou, no ano anterior, a viagem dos brasileiros Melissa Dullius e Gustavo Jahn para exibir seu Muito romântico, uma ficção biográfica com matizes de ensaio e cinefilia experimental em torno da mudança dos dois para Berlim, onde moram e fazem filmes em 16mm há mais de dez anos, no âmbito da produtora Distruktur.

Foi também nesta edição que fizemos parceria com os integrantes do Rabbit Hole, coletivo europeu que veio ao Janela exibir dois programas de filmes na interseção entre o cinema, as artes visuais, a cultura da rave e a experiência queer.

A Berlinale é um mundo imenso e há ali toda forma de ideia circulando. É possível entrar em contato com inúmeras visões de cinema, linguagem e sociedade, que de alguma maneira deslocam inspirações, contrastes ou ressonâncias para o processo curatorial do Janela, e isto tem como fonte ou meio o festival mas também a própria capital alemã, com os pequenos circuitos de conversa e troca que se formam no interior e no entorno das programações oficiais.

Vale notar que o Janela tem com alguma frequência feito estreias mundiais que posteriormente ganham primeira exibição internacional na Berlinale, como é o caso de Estás vendo coisas (2016) e Terremoto santo (2017), ambos de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, e de Jogos dirigidos (2019), de Jonathas de Andrade, que vai ser exibido este ano na mostra Forum Expanded.

EUGÊNIA BEZERRA – Que características você destacaria no Festival de Berlim?

LUÍS FERNANDO MOURA – Bom, junte-se perfis do evento e da cidade e talvez ele seja um festival com vocação para, digamos com a figura da hipérbole, abrigar virtualmente todas as características. É um festival de enorme apelo a um muito numeroso público, com dezenas de salas e centenas de filmes, às vezes com 4, 5, 6 exibições públicas cada um, fora as sessões de imprensa.

A paisagem é a de um grande centro expandido tomado por um festival, que é anunciado nos outdoors por todo lado, gera filas em pontos de venda, ocupa multiplexes e incríveis salas de rua. Um grande edifício na mesma região sedia o European Film Market, considerado o maior encontro do mercado do audiovisual no continente e que funciona como uma grande feira de negócios internacional. E há também o programa Berlinale Talents, que oferece diversos programas de formação e é talvez o mais reconhecido do mundo – tem aliás edições também anuais, mais compactas e direcionadas, no Rio e em Buenos Aires, por exemplo. Há, neste sentido, do oficial ao extra-oficial, muitos grandes festivais no interior de um mesmo enorme festival de múltiplos horizontes, que abrange muitos mercados e as mais diversas formas de atuação nesses mercados: desde a competição oficial, que inclui o pacote tapete vermelho e o Palácio Marlene Dietrich, exibindo filmes que esperam distribuição expressiva no chamado mercado alternativo internacional, até a Forum Expanded, mostra dedicada ao cinema experimental que veio nos últimos anos ocupando principalmente os cinemas do Arsenal, ligados à Cinemateca, e a Akademie der Künste, ótimas salas de cinema com ar de cineclube — e há ainda as retrospectivas, a competição de curtas, a Forum, a Panorama, a Generation e a nova seção Encounters.

São cerca de 400 filmes por ano. A eles se soma ainda a Semana da Crítica, um evento jovem, concebido pela crítica independente alemã, que tem se destacado a partir de uma postura antagônica (em sentido generoso, mas firme) ao modelo de grande festival panorâmico, e que faz ótimas sessões de uma dezena de filmes contemporâneos com debates na sequência, sob curadoria criativa, e que tem de alguma forma se integrado transversalmente ao festival (farão a estreia alemã de Sete anos em maio, filme de Affonso Uchôa eleito melhor curta brasileiro no último Janela, onde recebeu também o prêmio de aquisição do Canal Brasil) – em suma, há outros diversos pequenos eventos que se acumulam pela cidade, como a Boddinale, uma Berlinale micro, local e às vezes algo anarquista. Me parece que há aí festivais, subfestivais e contrafestivais num diálogo urbano de dimensões no mínimo plurais, e que movem também as comunidades berlinenses, seja pela adesão ou pelo tensionamento.

EUGÊNIA BEZERRA – Quais são as suas expectativas enquanto curador e pesquisador para esta edição do festival?

LUÍS FERNANDO MOURA – Estou bem curioso com as mudanças na curadoria do festival. Este é o primeiro ano de direção artística de Carlo Chatrian, egresso do Festival de Locarno, e de certa forma ele parece ter trazido algum sabor de Locarno para se juntar ao de Berlim. Note-se, por exemplo, a presença do filme de Marco Dutra e Caetano Gotardo na competição oficial. Há três anos, Marco Dutra exibiu (com Juliana Rojas) na competição do festival suíço. Aliás, é uma seleção atraente que me parece se posicionar de maneira consciente entre, digamos, hegemonia e contra-hegemonia.

Há filmes novos, por exemplo, de Tsai Ming-Liang e de (como sempre) Hong Sangsoo, mas também de Abel Ferrara e de Kelly Reichardt, Rithy Panh ou Christian Petzold. Me parece que cada um desses nomes acena para uma nota de cinefilia particular, sendo que temos ao fim um conjunto de realizadoras e realizadores instigante, mais arrojado que nos últimos anos.

A Panorama também mudou de direção, agora sob comando de Michael Stütz. Esta seção tem como perfil um espectro mais amplo do mercado de cinema, a seção mais volumosa e em geral bastante politizada no sentido mais imediato da palavra, muito diversa e que tende a buscar um contato mais direto com os públicos. Fico curioso porque Michael, ainda que seja um dos programadores da seção há muitos anos, é ex-diretor do Xpanded, ótimo festival de cinema queer berlinense, e é também um dos principais nomes à frente do Teddy, eixo LGBT da Berlinale. Tenho a sensação de que, estando à frente da Panorama, empresta a ela uma energia interessante.

Particularmente me atrai a nova seção competitiva Encounters, que traz 15 longas na chave artística da invenção e vai estrear títulos como os novos de Matías Piñero e Camilo Restrepo, também veteranos de Locarno (posso dizer que o Janela introduziu bem no Brasil o trabalho de Restrepo em curta-metragem). Essa edição será também um teste de novas apostas para celebrar os 70 anos da Berlinale. Ainda mais curiosidades: a mostra expositiva dedicada à cineasta guarani Patrícia Ferreira no interior da Forum Expanded, curada por Anna Azevedo. A programação de 50 anos da mostra Forum, que além dos filmes de 2020 vai reexibir a programação de 1971.

EUGÊNIA BEZERRAImagino que seja difícil escolher o que assistir com tantas opções… Existem temas ou eixos que lhe interessam mais nesta edição?

LUÍS FERNANDO MOURA – O Janela, e meu trabalho de pesquisa em geral, não é exatamente direcionado à pesquisa de um mercado específico (dito de outro modo, me interessam e interessam ao Janela tamanhos diferentes de filme, maneiras diversas de perceber e acessar o que podemos chamar, de maneira mais ampla, artes fílmicas), então como habitual vou distribuir a atenção entre diferentes seções. Tenho costumado acompanhar mais de perto a seção Forum, que trata do cinema independente com um interesse mais detido na pesquisa de formas, mas a nova seção Encounters se apresenta como outra constelação neste sentido.

Em geral me interessa até menos a competição oficial, onde os riscos são menores, e aliás a probabilidade dos filmes mais interessantes entrarem em cartaz no Brasil antes das datas do Janela é considerável, mas este ano há alguns bons filmes de interesse ali. Com isso quero dizer que também na competição oficial me parece que se investiu na exploração das relações entre crítica e poética, entre integração e dissidência, entre crise e clínica, e que fazem do cinema um bom território de questões e energias – ao menos se considerarmos os universos programados a partir de obras e circuitos pregressos. Me interessa perceber como o festival organiza essas relações dissensuais e como, em especial, os filmes as abordam e as provocam.

Claro, me interessam filmes, filmografias, diretoras e diretores específicos que trabalham na limitrofia, sejam seus programas artísticos mais ou menos convencionais, mais ou menos midiatizados, mais ou menos reconhecidos.

EUGÊNIA BEZERRA – Poderia comentar sobre como a presença em um festival internacional contribui para o trabalho de um curador? Imagino que, junto com a oportunidade de ver filmes de diversas partes do mundo, a possibilidade de conversar com artistas, curadores, críticos e o público deve ser algo enriquecedor…

LUÍS FERNANDO MOURA – Sim, é sempre uma maneira de pôr o olhar em movimento, de criar afinidades, de renovar e colocar em crise, no bom sentido, as percepções sobre as diferentes escalas de circulação e sobre os universos de criação.

EUGÊNIA BEZERRA – Falando especificamente sobre a sua experiência com o Janela, consegue identificar algum ponto em que a ida a Berlim teria contribuído para o seu trabalho, para seu olhar sobre o festival recifense ? 

LUÍS FERNANDO MOURA – A Berlinale é um festival que, obviamente, opera numa escala muito diferente da do Janela. Dito isso, os tantos festivais no interior da Berlinale, em particular as tantas seções, que são cada uma um festival, cada uma concebida sob certos critérios, buscas e desejos particulares, expõem também princípios próprios, inclinações políticas e um raciocínio próprios, uma cerimônia própria diante das ideias de organizar, exibir e apresentar filmes.

Para além de um ou outro filme, estas impressões em torno do ofício de curadoria são inevitavelmente apreendidas e levadas para o nosso exercício particular no Janela, um modelo de pôr filmes juntos que sinto que é muito nosso no festival, e que tem a ver com trabalhar numa escala pequena mas que seja capaz de articular tanto uma riqueza de modos e caminhos quanto propostas de desvio e pergunta, e que têm no horizonte tanto um diapasão global, atento aos intercâmbios, quanto à percepção do Recife, do público recifense, e do circuito e dos debates brasileiros, que nos movem localmente e como comunidade no interior de um estado e de um país.

Os festivais são pertinentes, no sentido de que eles só fazem sentido em certo espaço-tempo que é particular a eles, cada um deles, e nessa relação entre o próprio e o outro está a capacidade de uma curadoria mover ideias e experiências, que se espraiam pelas coletividades.

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