O Festival encerrou sua nona edição no último domingo (06) e premiou o longa Martírio, produção de Vincent Carelli e parte do projeto Vídeo nas Aldeias
Com uma programação voltada para contestações e política, a 9ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema chegou ao fim no último domingo (06). Não por acaso, o longa-metragem “Martírio” foi o vencedor da mostra competitiva do festival. O filme do documentarista e indigenista Vincent Carelli, em co-produção com Tita e Ernesto de Carvalho, dialoga com a proposta do Janela este ano, pautada no tema da desobediência – que, a princípio, se restringia à sua programação de clássicos, mas acabou se manifestando também nos filmes atuais exibidos durante o festival, como o premiado em Cannes “Eu, Daniel Blake” e o curta metragem pernambucano “O Delírio É A Redenção Dos Aflitos”.
A premiação do Janela foi realizada no terraço do Recife Plaza Hotel, na Rua da Aurora, contando com um júri formado pela produtora e curadora Fabienne Morris, o ator Irandhir Santos e o diretor artístico do Festival Cinelatino na Alemanha, Paulo de Carvalho. Na categoria de curta-metragem, os jurados premiaram o colombiano “Cilaos” na mostra internacional e o mineiro “Estado Itinerante” na mostra nacional. Já o júri jovem do Janela Crítica, formado por 9 cinéfilos, premiou o longa-metragem português “O Ornitólogo” e os curtas “The Beast (internacional)” e “Estado Itinerante (nacional)”. O Janela contou ainda com os prêmios especiais da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta metragistas de Pernambuco (ADB-PE), do Porto Mídia e o Prêmio João Sampaio Para Filmes Finíssimos Que Celebram a Vida. Confira todos os vencedores AQUI.
A importância de Martírio
Por Lara Ximenes
“Martírio” conta com uma narração em off feita por Carelli, que nos remete à “Cabra Marcado Pra Morrer”, importante obra do cinema nacional do documentarista Eduardo Coutinho. Outra semelhança com o filme de 1984 é que, em ambos, há um resgate do diretor a materiais filmados em épocas passadas, buscando ouvir a voz de pessoas historicamente silenciadas política e imageticamente.
A luta dos índios Guarani-Kaiowá pelos seus tekohas (terras sagradas) é contada de forma didática e fundamentada com dados e registros historicamente ignorados, tanto pelo discurso da mídia quanto pelos representantes políticos do país ao longo das décadas. A partir dos depoimentos dos próprios personagens, que deixam claro que não vão desistir de suas terras mesmo que o preço a pagar por isso seja suas próprias vidas, entendemos que a intenção do filme é, além da denúncia, materializar aquelas vivências para que não se percam no tempo – vivências essas que Carelli busca na gênese do conflito, desde o século XIX.
Além disso, há uma crítica direta aos governos nacionais, desde a ditadura – onde havia uma proposta etnocêntrica de “aculturar” os índios – até o governo da ex-presidenta eleita Dilma Rousseff, passando por imagens da TV Câmara onde senadores e deputados performam discursos enviesados em prol do agronegócio, com destaque para a ex-ministra Kátia Abreu. O descaso do poder público com o meio-ambiente em nome do desmatamento para produção de soja e mate é evidente, assim como a disputa pela demarcação das terras indígenas que, para os deputados da bancada do agronegócio, nunca pertenceu aos Guarani-Kaiowá (eles sequer são considerados brasileiros pelos deputados, ignorando o contexto da guerra do Paraguai, didaticamente explicado no documentário). A demonização da Funai e o genocídio escancarado dos índios pelos fazendeiros, que contavam com empresas de segurança privada para tirar os índios dos territórios na base de tiros e do horror psicológico, também são explanados ao longo das mais de duas necessárias horas de filme.
O diretor também tem consciência de que não basta registrar os índios, mas é importante que eles também se registrem – e esse é o papel do Vídeo nas Aldeias, ONG coordenada por Carelli dedicada à formação de cineastas indígenas e produção audiovisual. Muito do que o diretor filmou no início do Vídeo nas Aldeias, nas décadas de 1980 e 1990, é usado no documentário: são fragmentos da cultura e demonstrações de fé dos índios, sendo para eles um patrimônio iconográfico de sua história. Hoje, os próprios povos produzem seus acervos, tanto que algumas cenas do filme foram também filmadas pelos próprios Guarani-Kaiowá.
“Martírio” contou com financiamento coletivo (crowdfunding) para ser realizado e será disponibilizado online para atingir o máximo de pessoas possíveis.
Sobre Vincent Carelli
Desde 1973, Carelli está envolvido com projetos de apoio a grupos indígenas no Brasil. Nascido em Paris em 1953, é antropólogo, indigenista e documentarista radicado no Brasil desde os cinco anos de idade. Filho de pai brasileiro e mãe francesa, estudou Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo). Trabalhou na Fundação Nacional do Índio e foi jornalista e repórter freelancer das revistas Isto é, Repórter Três e do jornal Movimento. Foi também editor fotográfico e pesquisador do “Projeto Povos Indígenas no Brasil” do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), sucedido pelo Instituto Socioambiental.
No final de 1979, fundou, com um grupo de antropólogos, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), uma organização independente, sem fins lucrativos, destinada a apoiar projetos voltados aos indígenas. Foi Diretor do Programa de Índio da TV Universidade (co-produção do CTI com a UFMT).
Em 1986, iniciou o projeto Vídeo nas Aldeias com sua mulher, a antropóloga paulista Virgínia Valadão (que faleceu dois anos depois, em 1998. O projeto, criado no âmbito do CTI, promoveu, ao longo de mais de vinte anos, o encontro dos indígenas com suas imagens, tornando o vídeo um instrumento de expressão da sua identidade e refletir suas visões de mundo. Além treinar e equipar as comunidades indígenas com equipamento de vídeo, o projeto estimulou a troca de informações e de imagens entre as nações, que discutiam juntas a maneira de apresentar sua realidade para o resto do mundo. Hoje, a sede do Vídeo nas Aldeias é em Olinda, cidade onde também mora Carelli.
Em 2009, seu documentário Corumbiara, um longa-metragem que conta a história de um massacre de indígenas ocorrido em 1985 na Gleba Corumbiara, no sul de Rondônia, e a vivência do diretor com os índios isolados, obteve o prêmio de melhor filme do 37º Festival de Cinema de Gramado. Carelli ganhou também o prêmio de melhor diretor, dividido com o cineasta gaúcho Paulo Nascimento. Corumbiara também recebeu o grande prêmio do 11° Festival Internacional de Cinema Ambiental (Fica) e está disponível no YouTube. Você pode conferir, além de Corumbiara, um pouco mais sobre o diretor na seleção de vídeos abaixo:
Corumbiara, dirigido por Carelli sobre o massacre indígena no sul de Rondônia:
Putting cameras in the hands of people without voices, TEDx Talk de Carelli no TEDxAmazônia (em português):
Entrevista de Carelli ao portal Jornalistas Livres sobre Martírio e o Vídeo nas Aldeias, dividida em duas partes:
Visita à sede do Vídeo nas Aldeias guiada por Carelli durante a pesquisa do documentarista Leonardo Brant sobre a indústria audiovisual global:
O portal do Vídeo nas Aldeias, que conta com seis páginas de registros visuais do diretor como o filme A Arca dos Zo’é, que regista o encontro entre os índios Waiãpi e Zo’é.