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Fogo no mar

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A premiação da Berlinale foi anunciada no último sábado, mas o festival terminou oficialmente no domingo, com o Kinotag. É  o dia do público, uma ótima forma de despedida para um evento que, apesar de investir no tapete vermelho, tem nas ruas a melhor vocação. Os números finais impressionam: 337 mil ingressos vendidos, um novo recorde nos 66 anos de festival..

O Kinotag também a última chance de ver filmes perdidos durante a semana, também conhecida como repescagem. Eu mesmo assisti quatro, em salas distantes do QG do festival (Potsdamer Platz), em deslocamentos que permitem sentir melhor a vibração da cidade.

Berlim muda rápido demais. Nos últimos anos, entre bairros gourmetizados, terrenos baldios e gruas de construção, foi possível observar o aumento do custo de vida e mais estrangeiros (os “auslander”) nas ruas e estações de metrô. Este ano encontrei alguns acampados em espaços públicos, à noite, em torno de fogueiras, como no filme que Felipe Bragança, “Escape from my eyes”, curta exibido no Forum da Berlinale 2015 que dramatiza o assédio de uma voluntária branca por um refugiado negro.

Somente ano passado a Alemanha recebeu mais de um milhão de pedidos de asilo. É o maior fluxo de imigrantes no país desde o fim da Segunda Guerra. Há mais refugiados sírios ali do que em toda a Europa. A direita voltou a crescer. Aumentam casos de xenofobia. O mais recente aconteceu na Saxônia, onde prédios que receberiam refugiados pegaram fogo, ao mesmo tempo em que a população local tentou impedir a ação dos bombeiros.

Daí se entende a Berlinale ter selecionado tantos filmes, estimulado debates e atividades em apoio a refugiados. Vencedor do Urso de Ouro, o documentário “Fuocoammare” narra situações paralelas na ilha italiana de Lampedusa: o influxo de centenas de milhares de refugiados que tem nela a porta de entrada para a Europa; e o cotidiano de uma família local, sustentada pela pesca.

O título alude aos acidentes que acontecem pelo combustível expelido pelo motor a diesel nas roupas dos refugiados. O diretor, Gianfranco Rossi, o pinçou da música popular  “Fuocoammare”, pedida no filme por uma senhora que cozinha enquanto roga para que o mau tempo permita que o marido possa pescar. A mesma rádio atualiza os ouvintes sobre os refugiados. A senhora lamenta com distanciamento, da sua cozinha, como se a tragédia não fosse no próprio quintal.

Se os filtros da realidade não permitem, o filme estabelece as conexões.  Como no momento em que alterna entre a rotina policial e médica de triagem dos que cruzaram o Mediterrâneo e sobreviveram em condições sub-humanas, enquanto acompanha um garoto nativo vai à escola, ao médico e ensina um amigo a fabricar uma atiradeira. O menino ajusta a mira, tensiona e solta o elástico, em sons cortantes que dilaceram qualquer ingenuidade.

* filme visto no Haus Der Berliner Festpiele, Charlottenburg-Wilmersdorf, em 21/02/2016

Berlinale 66 – os premiados

"A lullaby to the sorrowful mistery", de Lav Diaz

“A lullaby to the sorrowful mistery”, de Lav Diaz: Prêmio Alfred Bauer para filmes que abrem novas perspectivas

O Urso de Ouro foi para o italiano “Fuocoammare“, de Gianfranco Rosi, documentário sobre fugitivos que tentam entrar na Europa pela Ilha de Lampedusa. É incomum um filme de não-ficção ganhar o prêmio máximo em grandes festivais. É verdade que o também italiano “César deve morrer”, dos irmãos Taviani levou o Urso de Ouro em 2013, mas ali havia uma proposta híbrida de encenação com presidiários. E “Fuocoammare” é um filme 100% documental, que alterna entre o cotidiano de um morador da ilha, um garoto italiano alheio à estas situações e o resgate e triagem de refugiados africanos.

“Fuocoammare” não é o melhor filme da competição oficial da Berlinale e tampouco sobre a crise dos refugiados (dos que vi, gosto muito de “Havarie“). No entanto este é o principal tema não apenas da Berlinale, mas da Alemanha, o país que mais recebeu asilados na Europa. E Ursos políticos tem sido comuns nos últimos anos. Presidente do júri, Meryl Streep é uma atriz politicamente engajada, então entende-se a decisão, que privilegiou a dimensão estética nos demais prêmios.

É o caso da produção filipina com oito horas nada cansativas de duração, “A lullaby to the sorrowful mistery”, de Lav Diaz, que ganhou o Prêmio Alfred Bauer para filmes que abrem novas perspectivas. Em preto-e-branco fantástico, o filme narra a revolução filipina de 1896-98. Entre fantasmas, mitos e consequências, há belas reflexões sobre criação artística e o cinema enquanto ilusão compartilhada.

Independente do reconhecimento do júri já havia sido um grande acerto e uma demonstração de coragem por parte do festival em tê-lo selecionado para a mostra oficial competitiva. Já que o circuito comercial de cinemas jamais programará um filme com tamanha duração, cabe aos eventos – e posteriormente à internet, disponibilizar e repercutir esta obra cujo poder é, da primeira à última instância, o de renovar a crença na imagem cinematográfica.

Pessimistas (“Morte em Sarajevo” e o polonês “United States of Love”) ou otimistas (“L’avenir” e “Koletivitet”), os premiados refletem a seleção deste ano, formada por filmes que, espelhos ou martelos, recaem sobre mundos em convulsão.

Lista dos premiados

Mostra Oficial de Longas
Urso de Ouro: Fuocoammare (Itália), de Gianfranco Rosi
Grande Prêmio do Júri: Morte em Sarajevo (França, Bósnia e ), de Danis Tanović
Prêmio Alfred Bauer para filme que abre novas perspectivas: A Lullaby to the Sorrowful Mystery (Filipinas), de Lav Diaz
Direção: Mia Hansen-Løve por “L’avenir” (França)
Atriz: Trine Dyrholm por “Kollektivet” (Dinamarca), de Thomas Vinterberg
Ator: Majd Mastoura por “Hedi” (Tunísia), de Mohamed Ben Attia
Roteiro: Tomasz Wasilewski por “United States of Love” (Polônia), de Tomasz Wasilewski
Urso de Prata pela excepcional contribuição artística: Mark Lee Ping-Bing, pela fotografia de “Crosscurrent” (China), de Yang Chao
Melhor filme de estreia (€ 50,000 pelo GWFF): “Hedi” (Tunísia), de Mohamed Ben Attia

Competitiva de Curtas
Urso de Ouro: “Balada de um Batráquio” (Portugal), de Leonor Teles
Urso de Prata (prêmio do júri): “A Man Returned” (Inglaterra, Dinamarca, Holanda), de Mahdi Fleifel

Informações completas no site da Berlinale