Para se criar uma empresa, da concepção da ideia até à inauguração, o caminho é longo. Quando se trata de um empreendimento solidário, o cuidado com o planejamento é o mesmo, mas com uma diferença: se a maioria das pessoas está acostumada a trabalhar e produzir em um sistema hierarquizado, vai ter que descontruir essa ideia e se acostumar com a democracia como novo modelo de gestão. E essa não é das tarefas mais fáceis. Dos mais de 20 mil empreendimentos solidários existentes no Brasil, apenas 8% começaram pelo desejo de trabalhar comunitariamente. A professora Rosangela Alves de Oliveira, da Universidade Federal de Natal, diz com clareza: é preciso ser reeducado para trabalhar com economia solidária.
Experiência no assunto não falta a Rosangela. Assistente social de formação, foi trabalhar na Caritas da Paraíba, e também integrou a equipe da Incubes (Incubadora de Empreendimentos Solidários -http://www.ufpb.br/incubes/), instituição que ajudou lançar centenas de projetos. Em 2002 fez um mestrado em práticas educativas na economia solidária e, em 2003, veio para a Alemanha fazer doutorado. Aqui, ajudou a criar a primeira incubadora universitária de economia solidária da Alemanha, a Solidarische Ökonomie Verain, em Kassel, entre 2005 e 2008. Ela é também uma das fundadoras do Fórum de ES no Brasil.
Rosângela foi uma das participantes do grupo de discussão que que abriu a programação do Kongress Solidarische Ökonomie und Transformation Berlin 2015 nessa quinta-feira, falando sobre o tema Solidarisch wirtschaften in Berlin-Brandenburg und Brasilien (Economias de solidariedade em Berlin-Brandenburg e no Brasil). Ao fim da palestra, a especialista lançou um desafio à platéia: “O mundo tem os olhos na Alemanha, pela força da sua economia e, agora, pela recepção aos refugiados. Essas pessoas saíram de onde estão pela guerra e pela desigualdade social e agora estão aqui. Acho que a presença delas deve ser mais um estímulo para que se pense em um modelo mais justo para todos”.
Qual o ponto de partida para um empreendimento de economia solidária?

Sem educação para a economia solidária (ES) não existe um bom projeto. Nós vivemos numa sociedade marcada pela competição, e a ES muda essa perspectiva. Mas solidariedade não se dá por decreto. É preciso estimular que as pessoas se juntem. Apenas 8% dos mais de 20 mil estabelecimentos de ES no Brasil começam com o intuito de trabalhar democraticamente em grupo. O que motiva as pessoas é ganhar melhor. Claro, isso é um dos focos, mas é preciso orientar, ensinar o que é a agroecologia, respeito aos gêneros, às distintas etnias, aos direitos dos trabalhadores. É a partir desses desafios que fazemos as transformações sociais. E tem dado certo.
Como isso funciona praticamente?

Um dos processos é a metodologia de incubação. O primeiro desafio é conhecer as pessoas, identificar os potenciais desse grupo. Nesse momento, não importa qual será a formalização, se vai ser uma cooperativa ou uma associação. Depois, vamos para o processo de capacitação, uma média de seis meses de oficinas e conversas. Quando tópicos como temáticas, limites e talentos são identificados, começamos a pensar a parte administrativa e detalhes como jornada de trabalho – afinal uma empresa que tem que ter um retorno na renda das pessoas.

E os resultados alcançados são positivos?
Gosto muito de um exemplo, que embora não seja recente, é muito forte pelos seus personagens e mostra que as mudanças são possíveis em qualquer situação. Em 1996, a prefeitura de João Pessoa entrou em contato com a Caritas, por que precisavam desativar o lixão do Roger, que ficava no centro da cidade. A questão era que lá viviam mais de 400 famílias de catadores. Aceitei a tarefa com a condição de ter autonomia. Queríamos trabalhar duas questões básicas. A primeira eram as moradias, que foram construídas em outro lugar. A segunda era o sistema produtivo. Os atores eram pessoas que não sabia ler nem escrever. Havia muitos acidentes na comunidade, especialmente com crianças, por causa dos garfos que eles usavam para mover o lixo. Para se ter uma ideia, conseguimos implantar a coleta de lixo seletiva em vários bairros de João Pessoa, gerenciada por esse movimento de catadores.

Como foi trabalhada a implementação do modelo de cooperativa?
Isso tem que acontecer em um processo formativo. Levamos dois deles para conhecer as experiências da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte, a Asmare, que já era conhecida internacionalmente. Trabalhamos com o princípio freiriano (de Paulo Freire) de educação, e ele chama isso de intercâmbio de aprendizado entre iguais. Uma coisa que me angustiava muito era ver que eles cozinhavam no lixo, mas nunca me senti no direito de falar isso com eles. Mas quando eles comentaram com os colegas de Belo Horizonte sobre isso, gerou-se um debate. Eles poderiam dizer que eu achava errado porque eu tinha o que comer. Mas quando alguém que está na mesma situação que eles diz isso, é diferente! Então, umas das estratégias formativas mais importantes é o intecâmbio, levar mulheres para conhecer mulheres, jovens para conhecer jovens. Quando implantamos a incubadora em Kassel, levamos dois alemães para o Incubes, em João Pessoa, e dois meninos de lá vieram para cá. Foram três meses de trocas. Isso é fantástico. Cursos e capacitações são importantes, mas a convivência entre as pessoas ensina muito sobre o que é trabalhar em grupo.